Anatomia de uma tarde perfeita: o bacalhau, o vinho e a arte de receber
Membros de confraria que se reúne periodicamente em São Paulo, os amigos cariocas Fernando Flores e Leila nos convidaram para um almoço em 23/11/13, na Barra da Tijuca, no Rio, onde moram. Em sua bela casa, receberam-nos de forma encantadora a nós e ao casal de amigos, Sergio Mello e Daniela.
Com a anuência dos anfitriões, e até porque os post anteriores (de 14/12 e de 22/12) tratam de harmonização, vale compartilhar o relato da experiência pela importância dos detalhes na arte de receber e pelo excelente resultado da harmonização de vinhos e pratos.
Para além da simpatia calorosa e generosidade sem igual dos anfitriões e seus filhos Bruno e Marina, não há palavras para a descrição do que se nos apresentou aos sentidos.
A começar pela música, no mais elevado grau em que ela se pode colocar, com o choro instrumental versátil que flertava com fado português, culminando no encerramento encantador com um tema de Gardel, na bem postada e afinada voz do Bruno que, inspirado por certo em sua bela e simpática Maíra, irrompeu com seu magnífico espanhol portenho, com todas aquelas apaixonadas inflexões de voz que bem faziam lembrar o expoente argentino que eternizou melodias e performances inesquecíveis.
Ao violão, o acompanhamento firme do Fernando, com a pegada portenha do tango clássico - sem concessões tecnológicas a La Barrafondo e Gotham Project - maravilhosos iconoclastas de viés eletrônico-, com aquele sincopado marcante do gênero e os breques que nos remontam aos passos de exímios casais bailarinos. Tudo a emoldurar a interpretação da síntese do mais belo produto cultural argentino: “Por Una Cabeza”, canção que ocupa no imaginário de muitos o pináculo de tudo que de melhor se fez naquele país tão belo, tão charmoso, tão dramático.
Arrisco dizer que, se pudéssemos traduzir a experiência em uma única palavra, talvez, por analogia, pudéssemos falar em sinfonia, executada sob as firmes e despretensiosas batutas de dois leves, bem humorados e harmônicos maestros:
Leila, introduzindo as entradas, colocou em cena uma bela diversidade de cores, aromas, texturas e sabores: o elegante e defumado salmão, o exuberante e intenso polvo à vinagrete de ótimo frescor e a “punheta de bacalhau” – esse é o nome lusitano para esse prato a base do peixe desfiado embebido em azeite-, à qual, para mim, jamais outra se igualou em sabores de notável suavidade e longuíssima persistência gustativa.
Gabriel, meu pequeno de sete anos, que o diga, permaneceria indefinidamente nas entradas, como um mítico Prometheus (*), num feliz antônimo de “suplício” sem fim até o completo exaurimento de seu apetite infantil...pobrezinho, mal sabia que, na coxia, as estrelas do espetáculo aguardavam o descerrar das cortinas para irromper na mesa roubando a cena: aquela inesquecível salada de camarão levemente picante e adocicada, em taça laureada por um delicioso e superlativo camarão ao que parecia flambado, seguida daqueles lombos escandalosamente saborosos de bacalhau ao azeite, ladeados por lusitanas batatas ao murro.
Gabriel é ainda jovem, aprenderá sobre o timing das coisas, mas nos desculpamos, pois, distraídos que estávamos com tantas e interessantes conversas, não atentamos para a forma com que ele, sem reservas, se entregara àquela fase inicial dos “trabalhos litúrgicos”, para não negligenciarmos o aspecto quase sacrossanto que os anfitriões imprimiram à alegre empreitada enogastronômico. A bem da verdade, nós adultos quase resvalamos no mesmo equívoco, e só não fomos penalizados por não termos estômagos tão diminuto...para não assumirmos que sejam laceados.
Brindamos algumas vezes aos detalhes a evidenciar o quanto havia de elaboração e de bom gosto em tudo que Leila, uma Lady em todos os sentidos, preparou para seus felizes comensais: das taças à exímia mesa, da decoração aos aromas que se insinuavam dos recônditos da cozinha para se confirmar em delícias no prato, tudo ao som de instrumental brasileiro com as belas citações do fado português, algo te naturalmente temático e encantador.
Fernando, numa magistral aula de simpatia e conhecimento, escalou para a empreitada vinhos que cumpriram de forma gloriosa a função dessa bebida entre nós: fazer-nos plenos e felizes! Quanto à harmonização, tanto os vinhos de entrada como os que acompanharam o prato principal enalteceram os sabores, texturas e aromas dos itens do menu. Sem exceção, o resultado em cada caso foi maior do que a simples soma das partes, sempre 2+2 = 6. Em enogastronomia, isso é a arte maior em que se esmeram sommeliers de todo o mundo, em busca não só da satisfação máxima de seus clientes, mas também, e por que não, de glória.
1.; aquele Cremant de Bourgogne, da Côte D’Or, de Louis Perdrier, marcou o início dos trabalhos já em alto estilo, amoldando-se à perfeição aos slices - quase cremosos e a um só tempo consistentes - de salmão com notas suavemente defumadas. Era um brüt, seco como deve ser, mineral e refrescante, com fina perlage e aromas suaves, de ataque gentil às laterais posteriores da língua, chamando assim à boca o polvo de textura maravilhosa e ao bacalhau desfiado no azeite;
2 - já o Joseph Perrier Blanc de Blancs nos desceu dos píncaros da apelação de Champagne, com sua cor amarelo palha forte, tendendo para o ouro, com a finíssima perlage, nos alçando ao padrão conhecido dos melhores espumantes do mundo. Aqueles indisfarçáveis aromas e sabores de brioches tostados e maçãs assadas tinham um ataque arrebatador, de longa persistência olfativa e gustativa, quase petulante, tal a assertividade de seus sabores e nuances. Jactava-se ele de exalar certa testosterona, por assim dizer, viés que remeteu à fibra de um certo Krug, que, ao escrever este texto, por lapso, o associei inicialmente ao espumante preferido de James Bond para os momentos de remanso nos braços de beldades de atributos indizíveis. Na verdade, Bond, em suas várias reencarnações em atores desde Sean Connery a Daniel Craig, não abre garrafas de Krug, mas do também encorpado Bollinger. Filigranas cinematográficas a parte, tanto nos surpreendeu o Blanc de Blancs que uma segunda garrafa foi escalada de última hora para o arremate de nossas impressões, como se a pretexto de memoráveis lembranças que queríamos perpetuar... era a quase infantil vontade de permanecer no Éden sem de lá arredar o pé. Em curso, o diálogo perfeito do Champagne com os sabores e texturas sedutoras dos frutos do mar de entrada;
3 - agora, o que dizer do Joseph Perrier Cuvée Royale Millésime 1999 ? Em tudo, mais classe, mais elegância, mais suavidade no tostado de pão, notas de nozes e mel, de frutos brancos como pêssego e pera, uma persistência igualmente longa, porém mais suavidade e leveza no fim de boca, mais discrição que o Blanc de Blancs antecessor. Entretanto, honestamente, se me fosse dado escolher entre uma ou outra garrafa, numa ilha deserta em que se encontrassem, como náufragos, apenas eu e minha bela Carolina, para uma última refeição sob o luar do pacífico sul, não saberia fazê-lo, pois ambas, a meu ver, estão num patamar tão alto, cada qual com seus atrativos, que provavelmente a escolha dependeria muito mais do momento do que de outro fator.
E para o embate entre branco e tintos frente ao bacalhau, a maestria do Fernando mais uma vez resultou em que tanto aquele quanto estes fossem excelentemente bem na escolta do nobre peixe.
4. o Meerlust Chardonay 2007 – Stellenbosch – África do Sul, de cor ouro, denotando sua evolução, de complexidade elevada, com notas de madeira bem integrada, mas com preponderância de frutos brancos maduros, maracujá e manga na minha percepção, ainda refrescante, dada sua acidez moderada, acompanhou muito bem o bacalhau e poderia seguir nos trabalhos, não houvesse tintos ciosos de dar o ar da graça à mesa;
5 - o Mouchão 2005 – Tonéis 3-4 - Portugal, de aromas fragrantes e muito elegantes de frutos negros silvestres, sem nenhum traço da rusticidade simpática e características de alguns tintos portugueses tradicionais, em equilíbrio com o álcool ao nariz, surpreendeu pela estrutura marcante, mas gentil, a compatibilizar bem com o peixe. Taninos quase imperceptíveis e ataque suave ao palato, dando o suporte essencial ao embate com o portentoso bacalhau. Longa persistência olfativa e gustativa amalgamavam-se à perfeição com as lascas destacadas do lombo embebidas no magnífico azeite. As batatas ao murro exerceram deliciosamente seu papel de falsa e subserviente neutralidade... “Oh Vida! Oh céus! Que sorte de árduos sacrifícios nos envergam a cada etapa desta epopeia?!”;
6 - na sequência, veio à mesa o Quinta do Vale Meão, 2007, distinto lusitano listado entre os cem melhores vinhos do mundo pela revista Wine Spectator em 2005, elaborado com as uvas típicas do Douro que entram no corte do afamado Barca Velha – touriga nacional, touriga franca, tinta Roriz (a mesma que na Rioja se chama tempranillo) e outras. Não o conhecia e fui pesquisar. Segundo se diz, informalmente é chamado de Barca Nova. Para alguns, chega a sobrepujar seu congênere e, conforme a importadora Mistral, em recente degustação às cegas promovida pela portuguesa Revista de Vinhos, teria se sagrado o melhor tinto da terrinha. Pelo prestígio que vai alcançando no mercado internacional, onde ainda hoje para nós é motivo de alegria quando portugueses se alçam a colocações tão altas na escala dos grandes vinhos do mundo, estávamos de fato diante de um grande...talvez o vinho do dia: de cor ruby escuro, fartas lágrimas na parede das taças, límpido e de pouca transparência, com discretíssimo halo de evolução. Nariz de frutos negros, austero e profundo. Na boca, encorpado, com taninos firmes e ainda arredondando, concentrado, contido, mas com matizes de complexidade notáveis, embora não esteja loquaz, um tanto tímido, aparentando potencial de guarda para mais alguns anos, quando então poderá, em outras garrafas, já que essa foi sorvida até a última gota, oferecer aromas mais abertos e complexos e sabores mais amadurecidos. De fato as notas técnicas apontam para guarda superior a 10 anos. Quem tiver uma garrafa dessa safra, embora já possa dela extrair muito prazer, se tiver paciência e guardá-la terá um tesouro que mostrará poder ainda maior de sedução na maturidade plena. Foi bem com o bacalhau;
7 - daí em diante, o mundo podia parar para eu descer. O que era aquele Pera Manca 2008, senão a síntese da perfeição em termos de harmonização com o bacalhau? Bela cor, boa acidez, estrutura gentil mas de personalidade, compatível com a do peixe, os aromas secundários marcados pela já boa evolução, classe, classe, classe! Alquimia de sabores, aromas e texturas resultando em sublime néctar... taninos ainda presentes, mas muito sutis, estava pronto, exemplo de equilíbrio e respeito à arte da vinificação. E, para nós, sobretudo, um tributo ao bem viver. Inesquecível!
Confesso que a minha balança, que antes pendia ligeiramente para os brancos em se tratando de harmonização com o bacalhau, acompanhando figuras veneráveis como Saul Galvão, ex colunista do caderno Paladar, do Estadão - que Deus o tenha, degustando em outras paragens celestiais!-, agora volta a ficar indecisa, ainda que pontualmente, depois deste sábado na Barra da Tijuca. Graças à maestria de Leila e Fernando.
8 - bem, e para o arremate dessa tela de Van Gogh, nossos anfitriões nos reservaram um maravilhoso Portal Moscatel do Douro – Vintage 2000. Sublime, para tomar de joelhos, saboreando a magnífica torta que parece ter nascido para aquele encontro com o Porto. Cor de caramelo escuro, aromas concentrados, intensos, sabores de mel, caramelo, passas de frutos brancos, cravo e outras especiarias, notas defumadas, matizes indizíveis, tudo emoldurado pela deliciosa e típica oxidação e pela generosa estrutura alcoólica. A perfeição em termos de branco fortificado. Um vintage para tirar o chapéu!
E para que aquela tarde fosse perfeita, estávamos ladeados pelos queridos Sergio Mello e Daniela, com suas histórias sempre interessantes, alto astral, notícias de viagens, novos vinhedos, novos vinhos, sabores e sons, as histórias de seu filho, também Gabriel, como o nosso. Aliás, os amigos que nos franquearam conhecer Leila e Fernando. Então a eles, nosso agradecido abraço.
Vale salientar que a riqueza de detalhes e a multiplicidade de pontos de vistas levam necessariamente a divergências quanto ao que se percebe de pratos e vinhos.
Essas impressões acima são as que me marcaram e que quis compartilhar primeiramente com os anfitriões, sem nenhuma concessão, e agora com vocês internautas, neste último post de 2013, mas, confesso, num inglório esforço de colocar em palavras tudo quanto se fez para que tivéssemos uma tarde mais que perfeita, daqueles momentos a se eternizarem, tal como o pequeno Gabriel ingenuamente fez à mesa de entradas, esquecendo-se do prato principal...
Licença poética a que me permito, quantos de nós não almeja, sempre que possível, adentrar ao paraíso e lá permanecer o quanto puder, até indefinidamente, ladeados por amigos sinceros, sem os quais não teríamos com quem compartilhar o indizível? Nossos amigos Fernando e Leila nos propiciaram um tanto disso...memórias inesquecíveis e balizadoras de novas experiências. Beijos e abraços nos dois, e em todos vocês que lograram chegar ao fim desse relato, que era preciso compartilhar após os posts sobre harmonização de vinhos e pratos.
Que as festas estejam sendo boas, prenunciando um 2014 com muitas realizações, saúde, e alegrias verdadeiras, lastreadas na amizade, no equilíbrio físico, mental e espiritual, para que possamos viver nossas vidas de maneira digna, sábia e plena, com os devidos salamaleks (**) aos bons e honestos viticultores do mundo para que, sob as bênçãos de Baco, possam continuar a nos entregar vinhos de excelência a preços justos!
Bons Brindes, Boas Festas e Feliz 2014!
(*) Antônimo de suplício sem fim = no caso, prazer infinito. Na mitologia grega, o titã Prometheus, após escalar o monte Olimpo e roubar dos Deuses o fogo para entregá-lo aos homens, foi sentenciado por Zeus a permanecer amarrado a uma pedra, onde diariamente uma águia viria a se alimentar do fígado do condenado herói titânico. Como agravamento da pena, o órgão se regeneraria a cada dia, para alimentar o pássaro indefinidamente, num suplício sem fim de Prometheus;
(**) Salamalek (do árabe Salaam Aleykun)= a paz esteja convosco!
Miguel Cordeiro Nunes é Advogado graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, com especialização em direito Processual Civil PUC-COGEAE e LLM – Direito do Mercado Financeiro e de Capitais, pelo IBMEC. Atua no setor financeiro e bancário em instituição financeira. Contato: miguelcn@terra.com.br