Carta a um Produtor
O cinema nacional está maquiado de "coxinha" há muitos anos. Não que seja uma opinião generalizada, às vezes encontramos filmes competentes, aqueles que nos trazem às profundezas do nosso ser - desejo de qualquer espectador coerente. Filmes corajosos, por assim dizer, é o que falta nos cartazes por aí.
Dizer que um filme avassalador é "cult", ou pior, "filme de arte" seria um pleonasmo vulgar. Cinema é arte, filme é arte. Quando ouvimos também que falta filme bom no "mercado", então compreendemos de perto a patologia da arte nas Américas.
O filme que estamos fazendo é no mínimo ousado e rebelde, por isso é uma tarefa impossível encaixá-lo num gênero. Quando vamos à locadora de vídeo e procuramos um filme de Fellini ou David Lynch, cada loja enfia a cópia ou em "Cult, ou "Arte", ou "Europeu"...
Nosso filme igualmente transitaria nas estantes. É filme "guerrilha", independente. Para não dizer "totalmente independente", outro bug de nossa amada língua portuguesa.
"Amor Líquido" deu certo por que o roteiro apaixonou as pessoas. Aproximou. Talvez esta a razão mais incrível de minha jornada com o projeto. Quando eu vi as pessoas dizerem "sim", por conta da força do roteiro, da força da ideia e seguirem firme comigo.
Impressionante como o que há de mais precioso na vida são a beleza, a potência da juventude e as ideias. Eu tive a ideia, saí por aí e de repente, tinha comigo, todos os dias, uma equipe de cinema formada e apaixonada.
Caminhamos dois anos (completos agora) realizando crowdfundings que permitiram o aluguel de equipamentos e o dinheiro da produção de set. A cada que mês que passava, mais gente entrava no filme, absolutamente entregues.
Hoje atingimos 60% do roteiro gravado, restando apenas uma parcela nesta fase final. Parcela da qual é a mais difícil, por conta das locações.
Por exemplo, há algumas cenas do roteiro numa praia. Que difícil levar todo mundo para a praia! E encontrar o lugar certo para gravar, para dormir! Enfim, tudo isso agora é uma conquista.
Junto a nossa diretora de arte, visitei hoje a Agência Cubo - guiados pelo Rodrigo - e ficamos fascinados pela qualidade humana, orgânica da arquitetura. Até brinquei que um lugar assim facilita as sinapses! Lembra os canais dos neurônios do cérebro, livres para circular, espaçoso, colorido. Locação mais-que-perfeita para a cena que desejamos gravar. Tivemos direito a um passeio de montanha-russa em realidade virtual, foi maravilhoso.
Quanto ao filme, a cena é simples. A protagonista está finalizando uma reunião na "Sala Branca". Atende o celular e circula pela agência (steady-cam) falando com o noivo. Encontra uma colega de trabalho e saem.
Essa sensação de arquitetura moderna que eu pretenderia filmar nesta cena é a luva do porta-luvas quando encontramos a Agência.
Veja só como se harmonizam, a história é a seguinte:
São Paulo. 2013.
Blade Runner
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Paula, uma linda workaholic que não para quieta, está com o casamento marcado. O noivo, um milionário iídiche de Higienópolis, quer tudo perfeito. Porém, a moça está trabalhando num importante projeto, sem tempo para pensar no casório. Ou será que é por que tem as piores dúvidas quanto a ser uma mulher casada?
Depois de terminar mais um dia de trabalho e passar rapidamente na loja em que seu vestido está sendo confeccionado, Paula convida sua personal stylist (Bela) para um happy hour. Lá encontra seus melhores amigos: a freelancer Sissi, a administradora Lion, o designer Alfredo, o fisioterapeuta René, a modelo Sephora e o professor Fidélis.
Entusiasmados com o casamento, todos discutem como tornar a despedida de solteira única e inesquecível.
A personal stylist, então, propõe algo totalmente diferente: uma estada de três dias na fazenda de um ex-playboy famoso na década de 80 (o Primo) que agora, recluso, oferece chá de ayahuasca para celebridades.
Todos hesitam cheios de preconceito. Entretanto, cansados das mesmices, com vontade de novidades e em busca de auto-conhecimento, são seduzidos pelo convite e marcam a viagem.
Assim começa a aventura de cada um deles. O efeito do chá causa as mais variadas alucinações e indagações shakespearianas, levando-os a experiência de expansão da consciência. Sobretudo Paula, que descobre o conflito sobre seu futuro. Ela percebe a liberdade possível diante da vida convencional que está sujeita a se entregar. Paula se vê numa bifurcação.
Progressivamente, a crise se agrava e afeta todos a sua volta. A história, portanto, é transformada num barato audiovisual que evidencia o contemporâneo desfiar dos frágeis laços humanos.
“Amor Líquido” é inspirado no pensamento de Zygmunt Bauman. O sociólogo que reflete sobre as condições do amor nos dias atuais. Numa época em que a expressão radical da sociedade é o consumo, onde as pessoas buscam sua identidade não naquilo que são, mas no que consomem e exibem. Como se dissessem “eu sou o que compro”.
Esse fenômeno faz parte da fluidez na sociedade de consumo onde não se valoriza o permanente, mas o temporário. Onde predomina o que Bauman chama de “Modernidade Líquida” na medida em que nada é sólido ou conserva forma por muito tempo. Tudo em mudança, tudo em inconstância – fórmulas potentes que provocam insegurança e medo.
Um crítico de cinema escreveu sobre o projeto: "Temos aos ouvidos e olhos um filme mergulhado, de cabeça, na Era de Aquário. Mas nada de Hair. Há cabelo, sovaco e chulé de Macunaíma. O limpo vira sujo e isso traz mais beleza do que havia. A câmera de Steinberg é um saci, pronta para brincar, nunca besta, mas delicada e divertida, como o saci de fato. É a tradução das reinações de narizinho para adultos, no cinema. Temos um começo Caetano/Almodóvar e então, depois, o filme vira Gilberto Gil esticado no buraco negro da película. Passamos por um drama Bethânia, mas então somos transportados por um encanto Gal. É o verdadeiro filme doce bárbaro. Crível na ciência dos afetos e guiado por Pã, SamPã. O filme é Godard, Rohmer, Truffaut pixado por Banksy. É o grafite harmônico e humorado na película de Bresson.
Se uma vez um cineasta como John Ford usa uma orquestra pesada para criar uma lenda, Steinberg rabisca tudo com um reggae ou Beethoven. Rigoroso na estética, apesar de pobre em recursos técnicos (viva Michelangelo), você ouve a risada secreta dos muros da cidade e seus stencills, buracos, portais de Alice. Câmera esperta, edição acadêmica – uma alquimia tão bem mixada como um DJ fabricando sonoridade ao vivo. Nesta mistura de referências e pesquisa, o espectador se perde, deliciosamente, num labirinto mágico".
Clique no link abaixo para assistir:
Vitor Steinberg é formado em cinema e história das artes pela FAAP, foi convidado por José Celso Martinêz Correia para trabalhar no Teat(r)o Oficina enquanto lia Paul Valéry em uma praia no sul da Bahia. Permaneceu na associação por três anos operando como editor de vídeo, dramaturgo e fotógrafo.