Sua Excelência, O Decanter! (Parte 2 de 3)
Vinhos envelhecidos e decantação – separação de sedimentos ou aeração ?
No exemplo da cena reportada no post anterior (Barolo de safra antiga sendo vertido para um decanter pelo sommelier, à luz de vela), o procedimento da decantação não fora motivado pela necessidade de oxigenar um vinho jovem, para torná-lo mais macio e aromático, pois tratava-se de um maduro vinho de guarda.
Muito embora o vinho tenha ali se beneficiado da oxigenação, por atenuar aromas mais intensos e liberar outros mais contidos, havia principalmente a necessidade de segregação de sedimentos do vinho envelhecido por mais de década, de grande estrutura, vinificado para envelhecer com dignidade e alcançar a maturidade com aromas terciários, com o bouquet que tantos almejam, mas que poucos têm a paciência de, após a aquisição da garrafa, guardá-la adequadamente para um momento futuro e especial.
Talvez seja útil dizer o que, de fato, o sommelier fez: ao inclinar a garrafa lentamente, o líquido foi aos poucos sendo vertido para o decanter, até que os sedimentos no fundo da garrafa inclinada começaram a vir em direção ao gargalo. Devido à densidade desses sedimentos, eles, aos poucos, foram se retendo no interior do “ombro” da garrafa, enquanto o líquido límpido continuava a escoar livre pelo gargalo, passando ao decanter sem os sedimentos. (No caso, o Barolo fora envasado numa garrafa bordalesa, pois há os que os são em garrafa borgonhesa, sem ombros. Mas o procedimento pode também ser feito com garrafas borgonhesas, tomando-se o cuidado de interromper o processo quando os sedimentos se insinuarem em direção ao gargalo).
De qualquer modo, durante o delicado processo, a luz da vela teve a função de revelar o movimento dos sedimentos dentro da garrafa, de modo a que o sommelier soubesse o momento exato de interromper a operação, antes que os sedimentos se precipitassem no decanter, voltando a se misturar com o vinho. Nada de magia, nada de trazer o vinho à temperatura adequada, nada de crendices. Apenas uma manobra para apartar sedimentos do líquido.
O sedimento é um pequeno contratempo que aconselha à decantação, para que o líquido não se turve na taça e para que nela não remanesçam essas borras, às vezes grânulos, oriundos da polimerização dos taninos, que possam desagradar aos olhos e ao palato, pois costumam ter certo amargor que macularia a performance do vinho na boca.
Tipos de decanters
Há decanters de vários modelos, mas até mesmo uma jarra poderá servir a esses propósitos de aeração de vinhos jovens ou de segregação de sedimentos de vinhos envelhecidos.
Talvez valha salientar que, se o Barolo da cena descrita no post anterior estivesse em idade avançada, o zeloso sommelier, ao invés do modelo de base larga e compacta que propicia vasta superfície de contato do vinho com o oxigênio, poderia utilizar o tipo de decanter de bojo não tão largo e mais alto, que propicia ao vinho menor exposição ao oxigênio, pelas razões que veremos a seguir.
A exceção aos vinhos envelhecidos além do ponto do apogeu evolutivo
Admitamos, ainda que forçosamente: mesmo o mais enófilo mais orgulhoso de sua adega, mesmo ou sommelier mais zeloso, pode errar nos cálculos ou até mesmo esquecer na adega uma grande garrafa dormindo na noite dos tempos.
Nessa hipótese, o vinho, como todo “ser vivo” que nasce e morre, vai assim entrar em declínio, deixando para trás seu momento de apogeu como um ponto perdido e distante no passado. Mais adiante, já como um ancião, privado da força e vigor da juventude, contará ainda, por algum tempo, com as vantagens da senioridade, da “vivência” e das sutilezas para dar satisfação, alegria e prazer a quem desfrute de seu convívio, qualidades que, entretanto, também vão se esvanecer com a inexorável e impiedosa passagem do tempo, até que o ocaso se imponha e não possa ser mais ignorado.
É fato e acontece bem mais do que se supõe. Controles de acervo de adega falham, expetativas de guarda são mal dimensionadas e garrafas veneráveis se perdem, sem jamais terem cumprido seu destino.
É útil, portanto, observar que, do ponto de vista evolutivo, vinhos que estejam no seu limite de longevidade, muito além de seu ápice, poderão apresentar aromas e sabores tão delicados e frágeis que deverá ser considerado se há de fato uma real necessidade da decantá-lo. Isso para que não se corra o risco de certos e raros aromas volatilizarem sem que sejam percebidos. É importante evitar o risco do vinho oxidar imediatamente após o procedimento, perdendo-se nele a riqueza aromática e gustativa que só a longa guarda traz aos grandes vinhos. Portanto, a depender de quão maduro esteja o vinho, deve-se evitar sua decantação.
Nessa hipótese, é aconselhável que, com dois dias de antecedência, a garrafa seja colocada em pé na adega, para que os sedimentos aos poucos se precipitem no fundo. Se a adega é um armário climatizado em que não caiba a garrafa em pé, ela deve ser colocada fora da adega e, por se tratar de um vinho nesse estágio, durante esse período eu ainda a manteria envolvida com algo que bloqueie a luz, como um cartucho de papel ou papel alumínio, para que ela não acelere no vinho processos químicos deletérios.
Uns trinta minutos antes de servir, e para que o vinho seja trazido à temperatura de serviço, a garrafa poderá ser colocada delicadamente na geladeira, em pé ou levemente inclinada se houver um suporte que permita essa posição. Poderá ainda ser colocada num balde com gelo e água, sempre sem agitação do líquido, que poderia restar turvado e com os sedimentos nele novamente diluídos.
Se a garrafa for à geladeira, sua abertura deverá ser feita apenas no momento de servir direta e delicadamente nas taças, pois colocá-la desarrolhada na geladeira poderá levá-la a uma contaminação do vinho por aromas comuns aos interiores de geladeiras, onde há outros alimentos, à vezes com cheiros intensos. Se for colocada no balde com gelo, poderá estar desarrolhada enquanto a temperatura é forçada ao declínio.
Se a garrafa estiver no acervo do restaurante, a providência poderá ser solicitada ao sommelier por ocasião da reserva.
Ufa! Quanto detalhe...Você poderá pensar que tais cuidados lembram os que pais costumam ter com seus bebês. Não será exagero e, para uma analogia mais próxima, lembram mesmo certos cuidados no trato com os idosos que, quando passam pelo processo de envelhecimento com dignidade, refinando percepções, revisitando certos sítios de sua longa e proveitosa existência, podem, apesar da fragilidade inerente à idade, exalar sabedoria, alegria, ternura, nuances deliciosos, às vezes sofisticação e por certo muita complexidade, que encantam a quem tem o privilégio de seu convívio.
Falo aqui de um vinho de guarda no seu limite de longevidade, bem além de seu ápice evolutivo, hipótese em que desaconselharia o uso de decanter. Assim, você estará garantindo que a riqueza aromática do bouquet ainda existente no vinho, resultante de anos de guarda, não se volatilize de imediato, colocando tudo a perder.
Portanto, isso só vale para os matusaléns de sua adega ou do acervo do restaurante. Os vinhos envelhecidos, mas ainda firmes, podem e devem ser decantados, pois, além da necessidade de segregação dos sedimentos que porventura tenham se formado pela polimerização de taninos, sempre se beneficiarão da oxigenação sem risco de perdas.
No próximo post, falarei de decantação de vinhos tintos jovens e de bancos.
Bons Brindes!
Miguel Cordeiro Nunes
Advogado graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, com especialização em direito Processual Civil PUC-COGEAE e LLM – Direito do Mercado Financeiro e de Capitais, pelo IBMEC. Atua no setor financeiro e bancário em instituição financeira. Contato: miguelcn@terra.com.br