Raquel Baracat

View Original

Defeitos do Vinho - Quando devolver uma garrafa

 “Não se deve devolver um vinho só por achá-lo ‘estranho’. É incrível, mas existem pessoas que acham que causam boa impressão na namorada ou nos amigos devolvendo o vinho no restaurante. Um amigo meu, dono de restaurante, me disse que uma vez um rapaz que estava com a namorada devolveu um vinho barato sem motivo. Meu amigo provou o vinho e, não encontrando nada de errado, foi perguntar que problema o rapaz havia encontrado. O rapaz disse apenas que o vinho não estava bom. Meu amigo disse então: ‘não é que o vinho não está bom. Ele não é bom. Ele é assim mesmo’.” Lilla, Ciro, Introdução ao mundo do vinho, 2004, pág. 198, Ed. Martins Fontes.

 

Defeitos do vinho

Talvez o dono restaurante referido no episódio não tenha sido feliz na defesa de sua carta de vinhos, pois acabou indevidamente sugerindo que ele admite oferecer um vinho de baixa qualidade a seus clientes. Uma boa carta de vinhos, montada por um sommelier de gabarito, pode e deve conter vinhos bons, apesar de baratos, assim como devem evitar vinhos caros sem qualidades que justifiquem o preço.

Portanto é possível que ele apenas tenha pretendido dizer que, apesar de não ser aquele um grande vinho, não havia motivos para a devolução da garrafa. Esse ato requer a constatação de defeito grave na bebida. De qualquer modo, o proprietário verbalizou seu inconformismo de forma espirituosa.

Cenas como essas eram corriqueiras entre as pessoas que, pretendendo demonstrar conhecimento sobre vinhos, eram na verdade cômicos e desinformados neófitos, preguiçosos quanto ao aprendizado empírico e teórico, preocupados mais com a aparência do que com a essência das coisas e das pessoas.

O vinho é na verdade simples, mas demanda atenção e humildade de quem com ele se relaciona de algum modo. Nunca se sabe tudo sobre ele, mesmo para os mais dedicados enófilos.

O ato de devolução de uma garrafa deve partir de uma razoável certeza da ocorrência de um defeito grave que torna a bebida não potável, e jamais de um desagrado quanto ao estilo ou estágio evolutivo de um vinho que se repute bebível, tratando-se ou não de um vinho caro.

Recentemente, numa tradicional pizzaria de São Paulo, presenciei uma cena de devolução de garrafa na mesa ao lado. Uma mulher ordenou ao garçon, com certa empáfia, a substituição da garrafa, porque a bebida travava em sua boca, causando secura. Mencionou outros “defeitos” que não sabia definir. Não parecia convincente em suas alegações.

Coincidentemente eu tinha uma garrafa do mesmo vinho e safra na minha mesa, devido a uma promoção da importadora que precisava divulgá-lo. Minha taça decantava o vinho por algum tempo. Motivo: tratava-se de um cabernet sauvignon jovem, fruta exuberante, notas de café e chocolate, portanto com alguma complexidade aromática, de bom corpo, ótima acidez,  caloroso e de boa persistência. Um tanto nervoso, dado que apresentava taninos que de algum modo ainda provocavam certa secura na boca, mas taninos finos, que não provocavam amargor, característica de um vinho com algum potencial de guarda. Os taninos ainda nesse estágio se deviam à relativa juventude da bebida, pois tinha dois anos contados da safra.

A senhora, talvez querendo impressionar sua companheira, insistiu em que o vinho apresentava esse “defeito”. O sommelier elegantemente sugeriu outras alternativas, já que todas as garrafas daquele vinho, daquela safra, apresentavam a mesma e natural característica. Um outro vinho foi servido enquanto a mulher jactava-se de ter exercido um suposto direito fundado na ignorância. Mas assim se fez, graças à política do restaurante de não confrontar o cliente, mesmo nessas patéticas hipóteses.

Depois o sommelier me confirmou que, na cozinha, degustara o vinho da garrafa devolvida e o único senão era de fato a presença ainda de taninos secantes, nem de longe um motivo para devolução de garrafa. O suposto defeito nada mais era que uma característica transitória e compatível com o consumo imediato.

O aumento do interesse pelo vinho tem elevado em muito o conhecimento geral sobre a matéria. Cursos se proliferam, o consumo aumenta, o turismo enogastronômica se beneficia e cenas como essas vão se tornando mais raras.

A produção mundial apresenta qualidade média bastante razoável atualmente

A devolução de garrafas de vinho em restaurantes é algo cada vez mais raro dada a evolução das técnicas de plantio, vinificação, envasamento e vedação de garrafas nas últimas décadas.

O ato de devolução de uma garrafa implica algum conhecimento sobre defeitos do vinho, mas, como se verá adiante, são basicamente quatro as hipóteses de defeitos graves em que, com segurança, você poderia rejeitar uma garrafa, exigindo do sommellier a reposição de outra, ou mesmo a troca por outro vinho:

a)     a oxidação;

b)    a doença da rolha (bouchonné);

c)     a refermentação na garrafa de vinhos não espumantes (tranquilos);

d)         a contaminação do mosto com a levedura Bretanomyces

Outros defeitos graves que justificariam a rejeição de uma bouteille são de ocorrência ainda mais rara, valendo por ora se concentrar nesses quatro motivos que vale desde já fixar e cujas características seguem em destaque mais adiante.  

Fato é que, felizmente, hoje os vinhos têm qualidade bastante razoável em todas as faixas de preço, desde os mais simples até os mais elaborados. Entre os mais baratos pode ser mais comum encontrar defeitos leves que não tornam a bebida imprópria para o consumo, assim como defeitos graves.

Entre os vinhos de média e alta qualidade é ainda mais difícil encontrar defeitos graves que tornariam a bebida imprópria para o consumo.

Ainda assim, defeitos existem e podem decorrer, por exemplo, de problemas na fase de vinificação, mas são comuns também que decorram de falhas no envasamento, no transporte e na armazenagem da bebida.

Exemplos não exaustivos de problemas na vinificação:

         o uso deficiente do antioxidante SO2 na fase de pré prensagem de uvas brancas pode não evitar a precoce deterioração do mosto, resultando numa bebida que oxidará prematuramente;

     o uso excessivo de SO2 pode aportar à bebida aromas bastante desagradáveis de fósforo queimado, mas que se volatilizam após algum tempo de taça, bastando aguardar alguns minutos para se apreciar as qualidades do vinho que nos interessam;

 

  a falta de higiene nos equipamentos da vinícola podem levar à contaminação de várias espécies, acarretando a degradação da qualidade potencial da bebida;

     o excesso de manipulação pode gerar uma produção com defeitos leves ou graves, daí as vinícolas mais modernas serem ultra automatizadas e com um nível de assepsia raramente encontrado em UTI’s hospitalares;

     uso de leveduras selvagens, veneradas por produtores biodinâmicos, podem levar a um descontrole do processo de fermentação, marcado pela instabilidade e pela imprevisibilidade, resultando às vezes em bebida de qualidade duvidosa e aquém da expectativas dos consumidores;

   açúcar residual ou ácido málico resultante da fermentação podem eventualmente ser refermentados, tornando um vinho tranquilo (não espumante) portador de certa quantidade de gás carbônico, tornando a bebida atípica;

     contaminação do mosto com a levedura  brettanomices, que provoca aromas escatológicos que lembram fezes de animais, suor, cheiro de cavalo etc.

                                                                                          

Exemplos de defeitos decorrentes do envasamento, do transporte ou da armazenagem do vinho:

       garrafas mal higienizadas podem contaminar o vinho sadio que foi produzido com esmero na vinícola;

         fungos comuns na cortiça podem, em contato com o cloro utilizado na higienização e branqueamento do material vedante, produzir a doença da rolha (bouchonné), que torna o vinho insuportavelmente pungente, com odor de mofo, de pano de chão molhado e esquecido atrás da porta por dias;

       em viagens marítimas transoceânicas, grandes encomendas de importadores balançam interminavelmente ao sabor de vagas enormes até o porto de destino. Por vezes o carregamento vem acondicionado indevidamente em containers sem climatização para, desembarcado no cais do porto, ficar ao sol por meses, aguardando o burocrático desembaraço aduaneiro, enquanto o vinho literalmente cozinha durante o dia e se resfria durante a noite, descaracterizando-se por completo, perdendo boa parte de suas qualidades e onerando o bolso do consumidor com uma bebida abaixo da qualidade em relação ao preço por ela cobrado;

        chegado ao destino final,  as caixas ficam por meses ou anos no depósito de importadores ou de comerciantes não zelosos, com as garrafas em pé, com a rolha ressecando e comprometendo a vedação e facilitando a oxidação;

     às vezes as garrafas ficam expostas à luz excessiva ou outras perturbações do ambiente, letais para o vinho, que gosta do escuro, da umidade, do silêncio e do e ambiente inodoro de uma adega clássica.

 Essas são apenas algumas das perturbações que podem furtar do vinho a qualidade que dele se espera.

 Quando então devolver uma garrafa no restaurante ou ao comerciante?

Por fim, voltemos então às hipótese em que estaria o consumidor legitimado para exercer o direito de devolver uma garrafa, já que o simples fato de não gostar de um vinho ou, ainda, de detectar nele defeitos leves, não permite o exercício desse direito.

Como visto nos posts anteriores sobre degustação visual, olfativa e gustativa, essas fases da degustação dão dicas importantes sobre as qualidades do vinho e, como não poderiam deixar de ser, indicam também os defeitos que se reputem sérios o suficiente para a devolução da garrafa, antes mesmo do consumidor precisar levar o vinho à boca.

 

 1.     Oxidação

O vinho branco ordinariamente apresenta uma alteração de sua coloração ao longo da vida: vai do incolor ao âmbar, passando pelo amarelo esverdeado, amarelo palha e amarelo dourado. Quando oxidado, o vinho branco apresenta uma coloração escura, tendendo ao âmbar. No nariz, vai apresentar aroma avinagrado e, na boca, terá perdido a fruta e outros características que fariam o prazer da bebida em seu estágio saudável.

No tinto, a evolução da cor vai do vermelho violáceo passando pelo vermelho rubi, para depois se atenuar nas bordas da taça para tons alaranjados e por fim atijolados, quando então o vinho estaria na iminência do óbito.

No rosé, aqueles tons avermelhados ou de salmão derivarão para os tons amarelos escuros, culminando na cor da casca da cebola, situação em que a bebida deverá ser evitada, pois terá perdido a fruta e o frescor. No nariz e na boca, o avinagrado, a perda de equilíbrio e ausência de fruta são os indicativos de que o vinho oxidou.

A causa pode ser a maturidade excessiva, pois uma garrafa de vinho branco de consumo imediato, que resistiria no máximo de dois a três anos antes de entrar em declínio, não pode esperar por dez anos para ser aberta sem pagar o tributo da morte lenta; a causa pode ainda ser a permanência da garrafa em pé por longos meses, o que ressecaria a rolha, permitindo a intromissão de oxigênio que vai lentamente degradar o vinho. A excessiva exposição à luz pode também provocar alterações químicas indesejadas.

Vinho oxidado deve ser devolvido ao somellier sem cerimônias. Aliás, um bom serviço de vinho implica o profissional experimentar antes a bebida para que, detectado um eventual problema, o cliente seja poupado do desprazer, primeiro do desagrado visual, olfativo e gustativo, segundo, de ter que informar ao sommelier o que este de ofício deveria ter previamente percebido, para fins de discretamente substituir a garrafa.

Há situações que você mesmo pode evitar que se abra em sua mesa uma garrafa de vinho oxidado. Basta deixar de escolher aquelas garrafas que, pelo tipo de vinho e pela safra, não haveria possibilidade de que a bebida estivesse em bom estado.

Se, por exemplo, uma carta de vinhos disponibilizar um Beaujolais Nouveau safra 2004, por óbvio o vinho estará avinagrado, pois esse tipo de vinho é feito para ser tomado em no máximo dozes meses após a safra. Algo escabroso assim é caso de polícia, por resvalar no estelionato de induzir o consumidor incauto em erro, ou no mínimo é caso de envolver o serviço público sanitário que fiscaliza os estabelecimentos de alimentos para se evitar a comercialização de itens estragados.

 

 2.     Doença da Rolha (bouchonée)

Se algum dia o vinho que for aberto em sua mesa apresentar aromas de mofo, pano de chão molhado, jornal molhado, enfim, um cheiro desagradável sob quaisquer aspectos, é possível que você tenha sido premiado com uma das garrafas inseridas no grupo de 5% afetadas pela doença da rolha, provocada pelo famoso TCA (tricloroanizol).

Um fungo comum na cortiça às vezes tem uma reação desastrosa ao cloro utilizado no branqueamento do material vedante, do que surge essa substancia que arruína o vinho, muito embora possa aparecer em vários níveis de intenisade.

Às vezes, o cheiro é discreto no início, mas bastará você deixar o vinho na taça algum tempo para que se intensifique, o que afastará a incerteza sobre o grave defeito da garrafa que, nessa hipótese, deverá ser substituída imediatamente pelo sommelier.

Essa doença não poupa nem mesmo os grandes e caros vinhos disputados por milionários, sendo impossível identificar o defeito antes da abertura da garrafa.

Garrafas fechadas com screwcap (tampa de rosca) não estão livres desse problema, pois o TCA pode decorrer, mais raramente é verdade, não da cortiça, mas da madeira da barrica em que o mesmo tipo de fungo tenha tomado contato com o cloro durante a higienização da barrica.

 

 3.     Refermentação indesejada na garrafa

Quando se quer espumante, ordena-se espumante. Quando se quer vinho tranquilo, pede-se vinho não espumante. Se você escolher na carta de vinhos um Chinon (tinto  de cabernet Franc do Vale do Loire) e ele liberar borbulhas do fundo da taça, você estará diante de uma garrafa em que, por inúmeras razões possíveis, ocorreu uma segunda fermentação em que leveduras processaram açúcar residual ou ácido málico. Eu não teria dúvidas em pedir a substituição da garrafa, em razão desse defeito grave. O mesmo se pode fazer diante de um espumante que não produza bolhas de gás carbônica.

 

 4.     Contaminação do mosto com a levedura brettanomyces

Esse tipo de levedura pode, conforme a intensidade, provocar aromas pungentes escatológicos como fezes, suor intenso, cheiro de couro de cavalo etc.

Contraditoriamente, a ação discreta  dessas leveduras na fermentação podem conferir interessante complexidade ao vinho, mas hoje a deteccão de brett na bebida é considerado defeito grave e pode desclassificar um vinho numa degustação.

Curiosamente, o Chateau Haut-Brion, produtor de um dos cinco 1Er Cru de Bordeaux assim classificados em 1855 a mando de Napoleão III, utiliza intencionalmente essa levedura na vinificação de seu vinho para aporte de complexidade aromática que lhe é conferido bela bastarda, tendo ele uma infinidade de fãs milionários que podem pagar a fortuna que custa cada uma de suas garrafas.

Espero que você não precise exercer esses conhecimentos, mas, se algo realmente incomodar numa garrafa, algo que chame a atenção na análise visual ou na análise olfativa, ainda que não lembre dos detalhes aqui mencionados, chame o sommelier. Se ele tiver uma boa formação será de grande auxílio caso você esteja em dúvidas sobre a ocorrência de um defeito grave na garrafa que justifique sua substituição.

Bons brindes! E que tenhamos razões para desarrolhar boas e saudáveis garrafas para comemorar o avanço de nossa sofrida seleção canarinho na Copa  do Mundo  rumo à final. Rápida recuperação a Neymar e que venha a Alemanha!

Miguel Cordeiro Nunes

 

Advogado graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, com especialização em direito Processual Civil PUC-COGEAE e LLM – Direito do Mercado Financeiro e de Capitais, pelo IBMEC. Atua no setor financeiro e bancário em instituição financeira. Contato: migcnunes@yahoo.com.br