A verdadeira história do incêndio no Bazar de la Charité, retratado na série da Netflix - Coluna tudo sobre Paris de Rogerio Moreira
O Bazar de la Charité (Bazar de Caridade) era um evento organizado anualmente pela aristocracia católica francesa. Fundado em 1885 por Harry Blount e presidido pelo barão Armand de Mackau, o bazar tinha como objetivo a venda de produtos diversos, como roupas, bijuterias, obras de arte entre outros objetos em benefício dos pobres.
Esse evento de caridade se tornou uma das datas mais importantes do calendário mundial, “Um dos locais de encontro mais elegantes e aristocráticos”, diziam alguns dos folhetins que circulavam à época.
O Bazar não era uma instituição única, mas uma espécie de associação que permitia a reunião de várias instituições de caridade num único espaço, com as vantagens de maior visibilidade perante o público e menores custos com as despesas de aluguel e de instalação dos stands.
No ano de 1897, em sua 12ª edição, o Bazar instalou-se na Rue Jean-Goujon, 15, no 8° Arr (onde hoje encontra-se a Catedral de São João Batista), num terreno disponibilizado pelo banqueiro Michel Heine, onde foi construído um galpão de 80 metros de comprimento e 20 metros de largura (algumas fontes informam que a largura do terreno tinha 13m ou 19m), alugado pelo barão Mackau.
Uma das raras fotos do interior do Bazar antes do incêndio.
O Bazar foi decorado para representar uma rua de Paris na Idade Média, com ambientação cenográfica minuciosamente preparada.
Uma das mais esperadas atrações do bazar seria uma apresentação cinematográfica (inventada quatro anos antes pelos irmãos Lumière) onde, por 50 centavos, os visitantes poderiam assistir às imagens projetadas por uma câmera de 35mm Normandin et Joly: Os filmes exibidos eram: “Sortie de l’usine Lumière à Lyon”, “L’Arrivée d’un train en gare de La Ciotat” e “L’Arroseur arrosé”.
“L’Arrivée d’un train en gare de La Ciotat”, um dos filmes exibidos no dia do incêndio.
Vários ambientes formavam o espaço, que foi dividido a partir de uma porta dupla abrindo-se para uma ampla avenida com 80m. de comprimento, onde estavam posicionados 22 stands, restaurantes e outras atrações Tudo muito luxuoso, com telas pintadas por estilistas, tecidos finos e papel marchê revestindo o teto e até um balão de gás suspenso no centro do salão. Por segurança, era proibido fumar no local.
Em frente à entrada foram instalados um restaurante e uma adega. Na parte dos fundos do galpão ficava um pátio, que fazia divisa com o Hôtel du Palais. Neste pátio foi construída uma sala para abrigar o cinema, cujo teto recebeu um revestimento de veludo, que tornou a temperatura ainda mais quente e sufocante nesses dias ensolarados da primavera parisiense.
O incêndio
O evento aconteceria entre os dias 3 e 6 de maio de 1897. No primeiro dia, o evento ocorreu como o previsto, com vendas acima de 4.500 francos e grande circulação de pessoas da alta sociedade, inclusive com uma homenagem à Mademoiselle de Flores, filha do embaixador espanhol.
No segundo dia, o fatídico 4 de maio, o evento seria abrilhantado pela presença de Sofia Carlota, duquesa d’Alençon, uma das idealizadoras do evento, e irmã da Imperatriz da Áustria, Sissi (Isabel da Baviera).
Sofia Carlota, a duquesa d’Alençon, uma das idealizadoras e maior estrela do evento.
Por volta das 16 horas, a Duquesa d’Alençon – que preside um dos estandes – teria comentado com sua vizinha, Madame Belin: “Estou sufocando…”; Belin completa: “Se houvesse um incêndio, seria terrível!”.
Às 16h30, um acidente fatal ocorre: a lâmpada de projeção do cinematógrafo havia esgotado suas reservas de éter e precisou ser recarregada (naquela época o projetor ainda não era alimentado por eletricidade). Quando o assistente de projeção acendeu um fósforo (o local era escuro), o recipiente mal isolado inflamou-se com os vapores do éter.
Compartimento de reserva de éter do cinematógrafo, idêntico ao usado no dia do incêndio.
Momentos depois, quando os organizadores foram informadas do acidente e começavam a evacuar ordeiramente as centenas de pessoas do galpão, uma cortina pegou fogo e as chamas se alastraram rapidamente pelos painéis de madeira e pelo forro do teto, revestido de tecidos e papel marchê usados para decorar todo o ambiente.
Com o fogo repentino vieram os gritos de pânico dos 1.200 convidados que tentavam desesperadamente deixar o local por uma única e mal sinalizada saída. Várias pessoas foram pisoteadas pela multidão em fuga.
Jornal da época, retrata a tragédia.
Ao chegar no local, os bombeiro se depararam com vítimas ainda em chamas saindo do meio do incêndio. Um número reduzido de pessoas conseguiu fugir pelos fundos, onde algumas de mulheres foram salvas por cozinheiros do Hotel du Palais, que retiraram três barras de uma das janelas da cozinha para permitir a passagem das vítimas.
Foto rara, mostra o que restou das instalações do bazar.
Apenas quinze minutos após o início do incêndio, tudo havia sido consumido: o galpão foi reduzido a uma pilha de madeira queimada, pois o teto em chamas havia desabado em cima das vítimas, cobrindo dezenas de corpos horrivelmente mutilados e carbonizados.
Ilustração representa a tentativa de fuga de algumas mulheres pela janela do Hotel du Palais.
Os gritos de socorro e pavor foram substituídos por um terrível silêncio.
Somente às 17h30min o fogo foi totalmente extinto.
Bombeiros e populares trabalharam a noite inteira, resgatando e levando os corpos das vítimas para o Palais de l’Industrie, para que as famílias pudessem identificá-los.
Ilustração representa o processo de identificação de corpos no Palais de l’Industrie.
O incêndio na rua Jean-Goujon provocou uma efervescência na imprensa que durou quase todo o mês de maio, enquanto no local do desastre, agora local de peregrinação, os vendedores ambulantes vendiam versos e orações impressos em folhas de papel aos espectadores que ali faziam vigília. Parecia que o incêndio não afetara somente Paris, mas toda a França.
Como ficou o terreno, já sem os escombros do incêndio. Ao fundo, podemos ver a Torre Eiffel.
Durante vários dias, funerais e procissões se seguiam na entrada de igrejas e cemitérios. Uma missa solene com a presença do então presidente Félix Faure, foi celebrada na Notre Dame pelo cardeal Richard, arcebispo de Paris.
Mais de 87 mil itens encontrados nos escombros, cujos donos não foram identificados, foram colocados à venda para os curiosos.
Sensacionalismo
A descrição meticulosa dos restos mortais, a triagem dos objetos encontrados, as cenas de lamentação, testemunham uma propensão óbvia ao sadismo por parte da imprensa, que explorava o sensacionalismo para vender jornais.
Lemos no jornal Le Soleil, em 6 de maio, a lista de ossos encontrados:
– 2 fragmentos de crânio;
– 2 fragmentos de costela;
– 1 fragmento de osso longo;
– 1 coluna vertebral;
– 1 fragmento de pele e
– 3 mechas de cabelo”.
No dia 12, o jornal Liberté anuncia que “o total de objetos pessoais resgatados (joias, bolsas, calçados, etc) chegava a 427” e, posteriormente, especifica que “nesta manhã, 28 carroças puxadas por um cavalo e 31 puxadas por dois cavalos transportaram 90m³ de cinzas, poeira e detritos para o aterro Porte Brandon, em Bagnolet.
A morte da duquesa d’Alençon
Sofia Carlota Augustina de Wittelsbach – a duquesa d’Alençon, então com 50 anos, estava entre as vítimas. Ela era uma das líderes do Bazar e teria insistido para permanecer no local até que todas as pessoas que estavam sob suas ordens fossem resgatadas. Tanto seu corpo, como de sua dama de companhia ficaram irreconhecíveis. Não se sabe se ela morreu asfixiada ou em virtude das queimaduras, mas a posição contorcida de seu corpo sugeria extremo sofrimento. Seu corpo só foi reconhecido graças ao trabalho do dentista da família que a identificou por sua arcada dentária, que continha obturações em ouro.
Cerimônia fúnebre de Sofia Carlota, a duquesa d’Alençon.
Aliás, esse incêndio foi um verdadeiro marco na história da Odontologia Legal, já que muitas das vítimas só foram reconhecidas através de seu trabalho. Até então, não se tinha história de um incêndio de grande impacto como esse, com o trabalho em equipe de um grande número de dentistas.
Após uma missa solene celebrada em 14 de maio na Église Saint-Philippe-du-Roule, a duquesa foi sepultada na Capela Real de Dreux.
Túmulo de Sofia Carlota, a duquesa d’Alençon, na Capela Real de Dreux.
A maioria das vítimas era formada por mulheres
Embora haja divergência entre o número oficial de mortos (os feridos passaram de 250), o site oficial da associação Mémorial du Bazar de la Charité numera 125 vítimas e divulga uma lista com 118 mulheres e 7 homens.
Entre os mortos, nota-se uma grande maioria de mulheres – quase todas da aristocracia – e um pequeno número de homens.
O jornal L’Écho, de Paris publicou um artigo em sua primeira página na edição de 14 de maio de 1897 intitulado “Qu’ont fait les hommes?” (“Que fizeram os homens?”) abordando a fuga dos homens durante o desastre: “Entre esses homens (cerca de 200), pode-se citar dois que foram admiráveis e mesmo uns 10 que cumpriram com seu dever. Os demais fugiram, e não apenas ignoraram pedidos de socorro, como ainda forçaram passagem por sobre corpos femininos, com empurrões, chutes, socos e golpes de bengalas.”
O outro lado
Mesmo com a polêmica, a proporção entre homens e mulheres presentes em 4 de maio de 1897 são conhecidas dos relatórios policiais e de estudos em vários jornais baseados em testemunhos nos dias seguintes à tragédia. Eles estimam entre 40 e 50 o número de homens para uma multidão entre 1.200 e 1.500 pessoas. Nada muito anormal, já que era uma terça-feira. Os cavalheiros cuidavam de seus negócios, enquanto as instituições de caridade eram dirigidas principalmente por esposas e filhas. Os registros mostram por exemplo, os nomes dos gerentes de todos os stands do Bazar. Há apenas um homem, o Barão Schickler, que por acaso, nem estava no horário do incêndio.
Heróis anônimos
Apesar de a imprensa acusar os homens de violência, omissão de socorro entre outras coisas, alguns jornais também souberam reconhecer os verdadeiros heróis socorristas naquela noite: homens que não pertenciam à aristocracia, como o encanador Piquet, que voltou à sua oficina depois de ter retirado vinte pessoas do fogo “sem perceber que seu rosto estava marcado por horríveis queimaduras”; o cocheiro Eugène Georges, “o herói que, pelo menos 10 vezes, (provavelmente mais), entrou nas chamas para resgatar feridos”; e também mulheres como a cozinheira Gaumery, do Hôtel du Palais que, depois de remover as barras de uma janela com vista para o terreno onde fora instalado o Bazar, conduziu dezenas de mulheres por essa saída minúscula e improvisada, entre outros voluntários anônimos. “É a generosa bravura dos filhos do povo” escreveria um dos jornais.
mprensa destacou alguns (até então anônimos) socorristas do incêndio.
Em homenagem a esses socorristas, dias depois do incêndio, foi oferecido um jantar, onde receberam medalhas de reconhecimento por sua bravura.
Premonições
Um ano antes do incêndio, em maio de 1896, a condessa de Maillé convida a famosa vidente da Rue de Paradis, Madame Henrietta Couëdon, a uma recepção com mais de 200 convidados, onde ela teria declarado:
” Perto da Champs-Elysées,
vejo um lugar não alto…
Não é para piedade,
mas é abordado
para fins de caridade
Isso não é a verdade…
Eu vejo o fogo subindo
e as pessoas gritando…
carne queimando,
corpos carbonizados.
Vejo em grande quantidade.”
Madame Henrietta Couëdon ainda acrescentou que todos os que a estivessem ouvindo naquele dia, seriam poupados.
De fato, relata o jornal Le Gaulois na edição de 15/05/1897, todas as pessoas que estavam presentes no dia da premonição e também estiveram no Bazar, sobreviveram.
Madame Henrietta Couëdon, a famosa vidente que previu o incêndio.
Mais premonições
Outra história de presságio, amplamente divulgada na imprensa foi a seguinte: na manhã do desastre, a irmã Marie-Madeleine, do orfanato dos Jovens Cegos, havia dito às amigas “Vocês nunca mais me verão; em breve receberão a notícia de que fui queimada viva.” A freira foi de fato morrer no fogo durante aquela tarde.
Arrecadação garantida
Para compensar as perdas causadas pelo incêndio, o jornal Le Figaro tomou a iniciativa de organizar uma campanha de arrecadação para que o valor que seria arrecadado com o Bazar, fosse reunido, para que a assistência aos pobres fosse garantida. A campanha foi um sucesso desde o primeiro dia.
Porém, um doador anônimo repentinamente enviou quase um milhão de francos, a fim de cobrir os custos do Bazar e arrecadar o valor exato das vendas do ano anterior. Depois de alguns dias de especulações, o Le Figaro revelou a doadora secreta: a Baronesa Hirsh – que jamais admitiu tal doação.
Capela de Nossa Senhora da Consolação
Uma outra campanha de doações foi lançada por iniciativa do Cardeal Richard, arcebispo de Paris, para comprar um terreno a poucos metros de onde o incêndio havia ocorrido.
A área escolhida ficava na Rue Jean-Goujon, 23, no 8° Arr e nela seria construída uma capela em estilo neoclássico e um memorial, projetados pelo arquiteto Albert Guilbert.
Com o sucesso da campanha, o terreno foi adquirido e a pedra fundamental foi lançada em maio de 1898. A Capela de Nossa Senhora da Consolação foi inaugurada em maio de 1900. Este projeto foi premiado com a medalha de ouro na Exposição Universal daquele ano.
Capela Notre-Dame de Consolation, construída próxima ao local do incêndio. Wikimedia Commons.
A capela pertence à associação do Mémorial du Bazar de la Charité – formada por descendentes das vítimas e foi classificada como Monumento Histórico em 19 de fevereiro de 1982.
Detalhe da fachada da Capela.
De 1900 a 1953, os edifícios ficaram sob os cuidados das Irmãs Auxiliares do Purgatório. De 1953 a 2013, eles foram confiados aos Missionários de Saint-Charles-Borromée (Missão Católica Italiana em Paris) e, a partir dessa data, aos padres da Fraternidade Sacerdotal Saint-Pie X.
No interior da capela, os nomes das vítimas estão inscritos em seis placas de mármore preto, com letras de ouro.
Monumento no Cemitério Père-Lachaise
Por decreto municipal de 28 de fevereiro de 1899, a cidade de Paris, erigiu um monumento às vítimas desconhecidas do incêndio do Bazar de la Charité ocorrido em 04 de maio de 1897 no Cemitério do Père-Lachaise. O monumento é mantido pela prefeitura de Paris.
Monumento em memória das vitimas no cemitério Père-Lachaise.
A série da Netflix
No Brasil, a série da Netflix, (cujo título foi traduzido para “Chamas do Destino”) é uma obra de ficção e se passa em Paris, no ano de 1897. Em sua casa, Adrienne de Lenverpré ajuda a sua filha Camille a encontrar o seu porquinho da índia que fugiu da sua gaiola. Uma empregada aproxima-se de Madame e diz-lhe que o seu marido precisa vê-la. Adrienne desce para se juntar a Marc-Antoine de Lenverpré, candidato à presidência do Senado, que deixa o seu piano, fumando um charuto, fecha a porta e dá-lhe um violento tapa no rosto. Furioso e ciumento, ele não gostou do que ela teria feito pelas suas costas, (ele soubera que a Madame secretamente queria divorciar-se e acreditava que ela teria um amante). A partir dai a história se desenrola com o evento do incêndio como pano de fundo…
Obs: nos arquivos da Prefeitura de Polícia de Paris existem duas caixas que reúnem um vasto conteúdo de imprensa da época, dedicado ao evento (documentos, recortes de jornais e depoimentos).
Para saber mais www.bazardelacharite.fr
Fonte: https://parissempreparis.com/a-verdadeira-historia-do-incendio-no-bazar-la-charite/
Rogerio Moreira
Coluna Tudo sobre Paris
Rogerio Moreira nasceu em Santo André/SP, é jornalista e publicitário, tendo estudado em instituições como PUCC, Unicamp e FGV. Apaixonado por história acredita que o estudo de nosso passado nos ajuda a entender como nos tornamos o que somos hoje. De suas viagens à Europa, surgiu a ideia de reunir informações e curiosidades sobre Paris e a cultura francesa. @parissempreparis