Depois de degustar o vinho com os olhos e com o olfato nos posts anteriores, chegou a hora dele se infiltrar delicadamente por entre os lábios e invadir a cavidade bucal, insinuando-se com gentileza contra a ponta da língua, resvalando por suas laterais, recobrindo ainda sua parte superior, passando de um lado a outro em movimentos suaves e por fim repousando por breves segundos enquanto é aquecido, tornando-se em parte mais volátil, antes de se precipitar garganta abaixo, deixando desprender de si moléculas aromáticas que atingirão o bulbo olfativo pela passagem retro nasal, revelando nuances nem sempre percebido na fase de olfação regular.
É aqui que o vinho vai confirmar, ou não, as leituras feitas nas fases anteriores da degustação. Poderá revelar facetas inesperadas, surpreender ou mesmo decepcionar, mas provavelmente você já terá uma boa noção do que esperar em razão das pistas detectadas nas análises visual e olfativa. Mas poderá irritar, principalmente se estiver diluído, aguado, ou com taninos de baixa qualidade ainda abrasivos, se a acidez for excessiva e, de um modo ou de outro, se tiver custado mais do que você estaria disposto a pagar pelas qualidades só agora reveladas na degustação.
Como mais de setenta por cento do que se percebe no vinho é aroma, a maior parte dos sabores que o vinho pode sugerir decorrem na verdade a ação de moléculas aromáticas que, volatilizadas, acionam nossa ferramenta olfativa pela via retro nasal. Chama-se a isso de aroma de boca.
Portanto, por mais que se diga sobre os sabores, nossa língua está equipada para detectar apenas o doce, na ponta, o azedo ou ácido, nas laterais, o salgado nas laterais posteriores e o amargo, na parte posterior. Diz-se que um quinto sabor, não encontrado no vinho, está catalogado como tal, o umami, que pode ser percebido em temperos orientais.
Ainda assim, a importância dessa fase da degustação é fundamental, não só porque a passagem das comidas e das bebidas pela boca tem profundas implicações psicológicas, eis que nela se realiza um objetivo atávico de sobrevivência e satisfação do ser humano, através da apropriação definitiva de elementos vitais à vida contidos nos alimentos em geral. Com a boca, entra em cena o quinto sentido envolvido na degustação: o tato. Como vimos:
os sons do líquido se precipitando no fundo da taça envolvem a audição. E não é só o som da música do vinho em contato com a taça que potencializa a experiência da degustação. A maior ou menor densidade do líquido, conforme se trate de um vinho mais ou menos encorpado, provoca sons diferentes nessa operação, dando aos mais atentos dicas do que esperar na boca;
as cores e nuances do líquido que dão dicas sobre os extratos, maturidade e complexidade, assim como as lágrimas que denotam o teor de álcool, envolvem a visão;
os aromas inebriantes resultantes de moléculas aromáticas que se volatilizam do vinho envolvem o olfato;
os sabores envolvem a gustação;
finalmente, as sensações táteis relativas ao peso do vinho na boca, sua adstringência ou maciez, a temperatura em que o vinho é servido envolvem o tato e desempenham papel fundamental na constituição do prazer ou da decepção que um vinho pode causar, seja por suas qualidades intrínsecas, seja pelas condições de guarda ou pelo próprio serviço do vinho conduzido pelo sommelier ou por quem incumbido de suas funções.
Importante, portanto, notar que, mesmo sendo o olfato parte preponderante na percepção das qualidades do alimento, e do vinho em especial, esse processo de olfação apenas se inicia com as aspirações do vinho antes da taça ser levada à boca, para depois continuar com a olfação via retro nasal, após o líquido ser aquecido no interior da boca e ser deglutido, com liberação de vapores que atingirão o bulbo olfativo, intensificando a experiência da degustação.
Por essa razão, uma bebida assim tão cheia de detalhes a merecer a atenção não deve ser sorvida como se fora um líquido destinado à matar a sede, muito embora haja muitos vinhos que cumprem bem essa função limitada.
Mas de modo geral, não se dever simplesmente beber o vinho sem um quê de reflexão sobre suas qualidades, a menos que você não se importe em deixar de extrair o máximo da bebida pela qual você pagou às vezes um preço não exatamente barato.
Portanto, para maximizar sua experiência com a bebida, leve a taça à boca e, após um gole generoso, sinta o peso e o impacto do líquido na língua, nas laterais da boca, na gengiva. Sinta sua estrutura, por assim dizer. Aguarde por alguns segundos, avalie, preste atenção aos detalhes, note como as sensações se sucedem, principalmente conforme a bebida sobe de temperatura na boca.
Se houver algo de errado, ainda que não seja um típico defeito, a informação será rapidamente lida pelos sensores envolvidos nesse fenômeno muito relacionado à sobrevivência da espécie desde tempos imemoriais. Um “não gostei” palpitará imediatamente e você então poderá avançar nas razões do desagrado, muito embora, se a bebida for realmente ruim, nem valerá a pena perder muito tempo nessa análise, a menos que você se torne um degustador profissional, tendo por função justificar suas avaliações.
No que prestar atenção
Se perceber que o vinho é arrojado e tem personalidade e força, diz-se que tem bom ataque; se é diluído, insosso, é aguado, não agrada. Note os sabores das frutas, se há adstringência, ou seja, se há taninos ainda não domados, rascantes, que marquem pela rugosidade no palato, como se mastigasse um caqui verde (e aqui se trata de impressões táteis e não propriamente gustativas, como visto).
Observe a acidez. Se o vinho tem frescor na boca, é porque tem boa acidez. Para que sejam enogastronômicos - amigos de comida -, brancos, tintos, rosados, fortificados e vinhos de sobremesa precisam de boa acidez, sem a qual os vinhos se tornam “chatos” ou “moles”, expressão atribuída aos fermentados desprovidos de acidez que pudesse torná-los vivazes e mais atraentes.
Produtores de regiões mais próximas do equador, ou pelo menos não tão distantes como as regiões clássicas do velho mundo, enfrentam o problema oposto do que aflige as regiões frias: quanto mais sol, maior a maturação e menor a acidez nas uvas, o que vale dizer, mais açúcar a ser transformado em álcool pelas leveduras.
Vinhos mais alcoólicos e frutados, com abundância de extratos sólidos, pedem acidez para haver equilíbrio. A falta dela tornará o vinho “chato”, assim como, por exemplo, inúmeros malbecs argentinos que, incríveis na primeira taça, passam a médios na segunda e se tornam extremamente enjoativos na terceira, dado o efeito xaroposo decorrente da super extração sem acidez que equilibre o alto teor alcoólico e o corpo.
Os grandes varietais argentinos feitos com essa uva, ou os blends de alta gama em que vá a malbec, resultam do cultivo em regiões altas em relação ao platô de Mendoza, entre novecentos metros e dois mil metros nas encostas da cordilheira dos Andes, onde as uvas tanto maturam durante o dia, quanto preservam acidez em razão do intenso frio noturno. É disso que a videira precisa para dar frutos propensos a dar grandes vinhos: amplitude térmica.
No outro extremo, estariam os vinhos marcados por acidez excessiva, no mais das vezes resultante da falta de equilíbrio da acidez com outros componentes. Às vezes decorrentes de uma maturação deficiente, numa safra marcada pelo fio excessivo frio na estação climática. No vinho equilibrado, a acidez não se destaca negativamente. Exemplo disso são os bons Sauternes bordaleses, Grains Nobles alsacianos e Tokaji botrytizados, cuja doçura extrema tornaria os vinhos enjoativos não fosse o equilíbrio dessa doçura com a alta acidez.
Por fim, a acidez é essencial a tintos e brancos para acompanhar comida, e essencial ainda à longevidade dos vinhos vinificados com esse objetivo.
Há algo de madeira na boca ou no aroma? Sentiu um tostado marcado, algo defumado? Se você sentir notas de baunilha ou coco, pode ter sido usada barrica de carvalho americano. Há algum tostado suave, notas defumadas ou algo de chocolate? Isso pode denotar a tosta do interior da barrica, a queima da superfície interna do tonel para aporte de complexidade de sabores e aromas ou mesmo a ocorrência de fermentação malolática, aquela em que bactérias transforam ácido málico (duro) em ácido lático (mais suave); e por aí vai.
Depois da deglutição, sentiu algum aroma diferente no retrogosto, ou os aromas de boca apenas confirmam o que já fora percebido nas fases anteriores da degustação?
E a persistência do sabor do vinho na boca após a deglutição? É inferior a três segundos? o vinho tem baixa persistência ou final curto; de quatro a sete segundos? média persistência gustativa; superior a sete segundos? Tem longa persistência, sendo um vinho de final longo, na linguagem corriqueira das notas de degustação nos catálogos de vinhos.
Dedique atenção à sensação de harmonia. A sua percepção final sobre o vinho deve levar isso em conta: se, no conjunto, a bebida é agradável, se tem qualidades apreciáveis ou qualidades que não se quer sentir no vinho, sejam porque são ruins, sejam porque não se harmonizam com os demais componentes da bebida, comprometendo o equilíbrio, desajustando o conjunto.
A Importância do Registro das notas de degustação
Feita essa preleção sobre as fases da degustação de vinhos, é hora de exercitar o ato consciente de degustar. Registre suas impressões sobre um pinot noir – da Cono Sur 20 Barrels, por exemplo, e repita o procedimento com um cabernet sauvignon, por exemplo o Cousiño Macul Antigas reservas, e, após, compare as impressões de ambos.
Ao tentar nomear as sensações que for sentindo na degustação, você vai achar estranha a ausência de nomes para fazer as associações, mas, como vimos anteriormente, no começo é assim mesmo.
Depois as palavras fluem. Preocupe-se apenas em encontrar nomes de sensações conhecidas que possam ser associadas ao vinho. Ao buscar essas associações, melhor que sejam elas autênticas quanto possível, sem, evidentemente, se cair no exotismo, como por exemplo: “o vinho exala notas de madeira velha de jacarandá que lembram o sótão da casa da fazenda da vovó, que visitava na infância!”A sensação, cara e muito particular, pouco significaria para os demais degustadores com quem você trocará impressões (mas eu faria essa anotação para meu registro pessoal... o vinho se ligaria de algum modo a uma lembrança de infância).
O hábito do registro ajudará na fixação das características não só da uva, mas dos vinhos. Ao final, após anotar o resultado das análises visual, olfativa e gustativa, descreva suas impressões gerais do vinho de forma sucinta.
Comparando vinhos
É possível que você conclua que o cabernet sauvignon do Cousiño-Macul Antigas Reservas, além de mais encorpado que o PN, é mais intenso aromaticamente, e ainda te remete a frutos negros maduros, como ameixa, amora, cassis, notas de chocolate. O pinot noir da Cono Sur 20 Barrels, além de mais leve, mais delicado e menos concentrado, te lembrará talvez frutos vermelhos, como morangos, quando jovem.
Em outra oportunidade faça o mesmo exercício com as uvas Merlot e Syrah, Cabernet Franc (CF) e Carmenère etc, em combinações variadas para acentuar as diferenças entre as cepas.
Com o tempo, tente a CS da África do Sul e CS do Napa Valley (EUA). Merlot do Chile com Merlot do Pomerol, Lalande de Pomerol ou St. Emilion. Um Syrah do Rhône com um Syrah de Washington State (EUA) ou com um Syrah da Austrália.
Depois teste vinhos de corte em que haja predominânica de CS, contrapondo cortes chilenos com cortes Bordaleses, ou compare cortes bordaleses da Toscana com cortes bordaleses do Líbano. Teste um blend típico do Rhône (Syrah, Mourvèdre e Viognier) com blends do mesmo tipo da Àfrica do Sul, como o SMV da Bellinghan.
Assim, o banco de dados da memória receberá um acervo de informações úteis às escolhas e análises que você fara daí em diante.
Talvez seja util insistir em que o esforço do registro atua como a ação de catalogar os dados nos arquivos da memória, daí a importância da disciplina em anotar tudo.
Bons Brindes!
Miguel Cordeiro Nunes
Advogado graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, com especialização em direito Processual Civil PUC-COGEAE e LLM – Direito do Mercado Financeiro e de Capitais, pelo IBMEC. Atua no setor financeiro e bancário em instituição financeira. Contato: miguelcn@terra.com.br