Noções de degustação – Análise olfativa (parte I)

Nada melhor que boas companhias, um bom apetite e uma mesa que nos encante, uma comida, simples ou sofisticada, mas que nos faça feliz, que nos remeta diretamente ao prazer e à alegria da existência corporal, que nos faça, ainda que por hora e meia de refeição, subir alguns degraus e estacionar no andar de cima, num plano astral elevado, lugar das melhores emoções, onde as portas da percepção entreabertas nos permitem vislumbrar oásis de experiências que se tornarão memoráveis.

O vinho pode ser um bom coadjuvante dessa festa cotidiana do bem viver, mas não deve roubar a cena. Ele sempre será um acompanhante da comida.

Excepcionalmente poderá ser degustado só, mas vinho pede comida e pede ainda para ser compartilhado. Nada mais melancólico que abrir aquele  Borgonha especial e não ter com quem brindar, com quem falar sobre as qualidades do vinho, sua cor, seus matizes, seus aromas em camadas, seus sabores e calor,  as emoções que ele evoca, as lembranças da tarde fria em que a garrafa foi comprada em Nuits-Saint-Georges, na Borgonha, ou na sessão de vinhos do empório do bairro.

Isso é algo a ser lembrado, mesmo por aqueles que estudam o vinho, que dedicam a ele atenção, pesquisam regiões, novos produtores, viajam para áreas vinícolas em busca de experiências e conhecimento etc. O ar de soberba que às vezes campeia em certos nichos no entorno do mundo do vinho é um desserviço à sua causa.

Mas a definitiva incorporação do vinho à cultura de um povo como o nosso, que ainda se ressente de grandes desigualdades em vários níveis, passa por essa fase de percalços culturais e tributários (já que por não ser considerado um item da cesta básica, o vinho sofre tributação de bebida alcoólica e, sendo importado então, o preço vai às alturas).

De qualquer modo, entender um pouco mais a respeito da bebida, poder falar sobre ela, ter uma boa noção para a decisão de compra no mercado ou na importadora ou para a escolha diante da carta no restaurante, pede um pouco de disciplina na sistematização de noções básicas.

Na degustação de vinhos se faz, em sequência natural, a análise visual, a olfativa e por fim a gustativa. No post passado, tratou-se da análise visual. Hoje, em foco, a análise olfativa, ainda num plano introdutório.

O sentido negligenciado

Antes de tudo vale lembrar que, apesar de poderoso, o olfato humano é um sentido negligenciado desde que, segundo alguns, o homem deixou de depender dele para sobreviver, pois o utilizava para evitar o consumo de alimentos colhidos na natureza que pudessem contaminá-lo ou mesmo matá-lo.

Para Darwin, desde que o homem pela primeira vez se postou de pé, afastando seu nariz do chão, deu-se início o distanciamento entre a espécie e essa sua ferramenta natural, a ponto de hoje os cheiros não terem nome próprio.

Numa de suas obras, a master of wine Jancis Robinson, relembra, com inconformismo, ser sintomático que, na área médica, pesquisadores não tenham dedicado atenção aos mecanismos psico-fisiológicos envolvidos na degustação, talvez em razão de disfunções no sistema gustatório não serem consideradas doenças graves. 

Diante desse quadro histórico, não se desenvolveu um vocabulário que nomeasse os aromas de forma objetiva. Nomear os cheiros é tarefa árdua em qualquer língua. Para nós, “branco” dispensa explicações, assim como “white” para falantes da língua inglesa, e “blanc” para os francófonos: trata-se de cor e ponto. A palavra branco, apesar de qualificar algo, pode ser o próprio substantivo: “o Branco”.

Apesar da relevância do tema na área de perfumes, não é possível dizer o mesmo quanto aos cheiros. Por exemplo: algo tem cheiro de “maracujá”. O porquê desse cheiro não ter nome próprio e precisarmos recorrer à lembrança do maracujá é reflexo desses distanciamento entre o homem e sua ferramenta olfativa. Cheiros tem nome própri e sempre é necessário recorrer à lembrança de algo a que se possa associar o aroma.

Daí ser essa uma das dificuldades na descrição de cheiros, inclusive quando se trata de vinhos, seara onde a habilidade na identificação de aromas ganha relevância crescente e faz distinção entre degustadores de todos os níveis em escala planetária. É, por assim dizer, um renascimento do interesse pelo olfato humano na área enograstronômica.

Vale lembrar que na década de setenta, um advogado americano, tendo seu olfato muito bem treinado, passou a editar uma revista de avaliação de vinhos (Wine Advocate) que, ganhando relevância internacional, passou a influenciar a formação do preço dos vinhos dos principais produtores mundiais. Por razões de saúde, Robert Parker acaba de vender sua revista, para seguir como consultor de vinhos.

De todo o modo, nomear aromas é sempre divertido, mas o acervo da memória gustativa delimita as possibilidades de descrição, que sempre se faz por associação com algo que se conhece previamente.

Treine seu olfato

Então, uma dica que vale compartilhar para quem pretende ter alguma desenvoltura na descrição dos aromas do vinho: para a fixação da memória olfativa, não deixe de cheirar tudo quando for à feira livre, à sessão de hortifrutigrangeiros do supermercado, a uma horta ou fazenda. Muitos dos cheiros já te são conhecidos, mas encontram-se caoticamente desorganizados na memória. Ao fixá-los, relembrando deles com esse objetivo, será como colocá-los dentro de uma gaveta ou um folder mental, indexando-os ao nome de algo que tem o aroma, de modo que, quando receber novo estímulo, a informação estará acessível no vasto acervo de informações olfativas.

Uma segunda dica diz respeito ao momento da degustação: após a análise visual, aproxime a taça do nariz, sem agitá-la. Você sentirá os aromas primários, que decorrem da uva de que o vinho foi feito. Ordinariamente remontarão a aromas de frutas e, às vezes, de flores, mas esse exercício ajudará, para dizer o mínimo, a fixar os aromas de cada uva:

Palavras “gatilho” para associação com as variedades de uvas

Quando aproximo uma taça de vinho branco do nariz e sinto o aroma de líchias e rosas, vem à mente, automaticamente, a ideia de que talvez esteja diante de um gewürstraminer, vinho feito com uva de mesmo nome, natural da Alsácia. É tão específico esse aroma que dificilmente estarei equivocado. Alguns aromas funcionam como gatilho que dispara, na memória, a associação com certas uvas, certas regiões.

Abaixo, alguns aromas típicos de certas castas tintas e brancas:

Uvas tintas:

- a cabernet sauvignon lembra cedro, ameixas e amoras pretas e, com frequência, notas de eucalipto e menta;

- a merlot lembra chocolate escuro e cerejas, bolo inglês escuro e com frutos cristalizados, e na região do Pomerol (Bordeaux), poderá ter aromas animais;

- a cabernet franc lembra framboesas  ervas secas;

- a carmenère lembra cereja e ameixa preta;

- a Syrah lembra amora preta, pimenta do reino, chocolate escuro, ervas secas, e aromas animais;

-a pinot noir lembra morangos em conserva, framboesas maduras; nos borgonhas, ao envelhecerem, adquirem notas de carne, de trufas (mas aqui já estamos falando de aromas terciários, que vêm do envelhecimento, e não dos aromas primários, quem vêm da fruta;

- a Tannat lembra framboesa, com toques de couro;

- a sangiovese lembra cereja;

- a zinfandel, ou primitivo, lembra amoras pretas, mirtilo, e especiarias, como pimenta do reino;

- a Gamay lembra banana;

- a nebiolo (que faz Barolos e Barbarescos), lembra rosas e alcatrão;

- a tempranillo lembra morangos, folha de tabaco e chocolate escuro (que vem da madeira – vide nota de rodapé 1);

- a touriga nacional lembra frutos vermelhos e rosas vermelhas;

- a malbec ou cot ou auxerrois lembra ameixas pretas, amoras pretas e frutas secas;

Uvas Brancas:

- a chardonay lembra maçã e frutas cítricas, como abacaxi;

- a aligoté lembra pêssego, amêndoas e nozes;

- a sauvignon blanc lembra também frutos cítricos como maracujá, limão taiti e siciliano, e em alguns casos lembra algo defumado, o que inclusive dá nome a uma das apelações do Vale do Loire, a AOC de  Puilly-Fumé (fumé de “fumado”);

- a sémillon lembra musse de limão (junto com a sauvignon blanc, dá origem, em Bordeaux, na AOC de Sauternes, aos melhores vinhos doces e, nestes, ao toque de creme de limão se somam as notas de mel e de nozes;

- a rieslingn  (que reina na Alsácia) lembra cítricos como limão taiti e tem sempre um toque mineral que lembra pedras, rochas, e, quando amadurece um pouco, remete a notas químicas como pedra de isqueiro, gasolina, muito peculiar dessa cepa;

- a chenin blanc (no Loire e na África do Sul) costuma ter notas de florais e mel, além de herbáceos, como grama cortada.

- a gewurstraminer (na Alsácia) lembra líchia e rosas;

- a viognier (no Rhône) apresenta notas intensas de  pera e pêssego;

- a viura, ou macabeo (na Rioja), tem notas de florais e frutas secas como amêndoas,  nozes.

- a muscat lembra laranja e, por incrível que pareça, também lembra o cheiro de uva mesmo, uma exceção entre as uvas viníferas (aroma de uva em vinho é considerado defeito, sendo sinal de que foram utilizadas uvas não viníferas na vinificação, uvas de mesa, cujo defeito se dá o nome de “foxado”, proveniente de “fox’- cheiro de pele de raposa);

- a xarelo, que entra no corte do cava espanhol, apresenta notas de damasco e florais

 - a torrontés (comum Argentina), intensamente aromática como a gewürstraminer, lembra  florais e pêssego;

- a furmint, que na hugria origina vinhos doces tão bons como os Sauternes franceses, tem notas de mel e maçã;

- a grüner veltliner, que dá ótimos e vibrantes brancos na Áustria, tem notas de limão taiti;

Ao aproximar a taça do nariz, é possível que se sinta, nos vinhos feitos com essas uvas, os aromas acima, muito embora o terroir, o estilo de vinificação, a safra etc possam alterar as características dos vinhos, mas, em regra, pode-se esperar por esses aromas, e até mesmo sabores, porque, no mais das vezes, eles se replicam em sabores análogos na boca.

O importante é que você desenvolva o próprio acervo de referências, que até  poderá divergir parcialmente do que maioria das pessoas percebem. Contanto que você consiga conectar a sensação olfativa à uma determinada uva, o seu objetivo terá sido atingido. Você estará se habilitando para produzir descrições mais consistentes e menos fantasiosas.

No próximo post, segunda parte deste artigo, tratarei de aromas secundários, aromas terciários e defeitos do vinhos perceptíveis na análise olfativa que poderiam, por exemplo, justificar a devolução de uma garrafa defeituosa ao sommelier do restaurante.

Bons brindes!

Madeira:  os aromas podem dar informação de que o vinho passou em barrica de carvalho, podendo ainda informar se houve tosta do interior da barrica para acentuar certos sabores no vinho, aportar complexidade, certas notas defumadas, tostadas, achocolatadas. Vale lembrar que certos toque achocolatados em tintos podem ser provenientes não da madeira ou de sua tosta, mas da fermentação malolática – aquela que, após a fermentação normal, ocorre para transformar ácido málico em ácido lático, o que torna a bebida mais macia.

Miguel Cordeiro Nunes

Advogado graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, com especialização em direito Processual Civil PUC-COGEAE e LLM – Direito do Mercado Financeiro e de Capitais, pelo IBMEC. Atua no setor financeiro e bancário em instituição financeira. Contato: miguelcn@terra.com.br