Um restaurante com chef talentoso. Em torno da mesa, um casal, e sobre ela, uma garrafa de Barolo de safra antiga, de rótulo tradicional, de produtor piemontês reverenciado. No serviço do vinho, um sommelier experimentado. Jovial, mas concentrado em seu ofício de desarrolhar e servir uma garrafa mais que especial, indicada ao cliente para comemorar uma data importante, cujo motivo não é revelado pelo casal.
A cápsula que envolve o bocal da garrafa é delicadamente retirada e colocada à parte. O saca-rolhas do sommelier é por ele introduzido na rolha, que aos poucos vai sendo extraída, íntegra, longa, imponente, sem fissuras que denunciem eventual ressecamento e a indesejável intromissão de oxigênio na garrafa durante sua longa hibernação.
Por fim, um espocar quase inaudível quando a rolha se liberta do gargalho que por mais de década a oprimiu no silêncio úmido e na escuridão da adega, clausura de outras tantas e distintas garrafas à espera de um grande e efêmero momento de êxtase e celebração.
Alguns aromas se insinuam da garrafa e incendeiam o imaginário dos dois enófilos destinatários do ritual...algo mágico no ar. Entre eles, lacônicas palavras sussurradas, olhares cúmplices, atmosfera lúdica, expectativas e pausas reverenciais.
Então, dá-se início a algo belíssimo para iniciados, e, para os não iniciados, além de belíssimo, também enigmático. O Sommelier coloca sobre a mesa um elegante recipiente de cristal incolor, de base larga e compacta, de gargalo longo e curvilíneo, que desabrocha tal qual uma sedutora tulipa.
Sobre esse recipiente, ele começa a inclinar a garrafa e, antes que se inicie o transbordo do líquido, ele traz à cena uma vela, que com a outra mão é colocada atrás do gargalo da garrafa. Mistério. Pausa curta e, ao mesmo tempo, eterna.
Então a garrafa é inclinada mais ainda e lentamente, despejando o líquido de maravilhosa cor, entre o rubro e o grená, com matizes de beleza indefinível forjada pela luz bruxuleante da vela atrás do gargalo.
A curiosidade induz ao um silêncio absoluto nas poucas mesas adjacentes, amplificando os sons quase musicais do líquido mergulhando na garganta do recipiente de cristal, que vai se tingindo de cores e texturas até tornar-se algo impressionista, de beleza mágica, tal qual as pinceladas de atormentados gênios da pintura.
Aos poucos, o líquido vai se esvaindo da garrafa e, antes que se esgote, ela é delicadamente trazida à posição vertical e repousada na mesa. Remanesce em seu interior um mínimo do vinho que no último instante furtou-se de se precipitar no belo recipiente, permanecendo assim, em sua hora derradeira, abrigado no fundo da garrafa que por anos lhe servira de escuro calabouço de vidro. No outro recipiente, o de cristal, uma quantidade sedutora e exuberante do líquido à espera da ovação.
O cliente verifica a rolha e experimenta a condição do vinho na amostra que lhe é servida pelo sommelier. Após sua aprovação, as taças são servidas e o casal brinda com um sorriso largo. E, após essas pausa contemplativa, o salão do restaurante volta ao seu alarido ordinário oriundo de animadas conversas.
Mas o que acabara de acontecer? A aplicação de uma técnica para trazer o vinho à temperatura de serviço, para melhor apreciação pelos olfatos e papilas do casal que celebra uma data especial? um ritual de efeitos plásticos, com foco no gesto e na aparência, para o encantamento dos olhos e corações, sem outros atributos sensoriais? Uma simpatia baseada em crendices sem maiores propósitos?
Bem, em que pese as notas poéticas que a cena inspira, é bom que se diga que o procedimento adotado pelo sommelier tem motivação meramente prática.
O recipiente de cristal que recebeu o transbordo do vinho é chamado de decanter, e o procedimento empreendido pelo sommelier, decantação.
Funções da decantação de vinhos
As funções da decantação são basicamente duas: a) quando se tratar de vinho envelhecido, vertê-lo para o decanter lentamente é uma forma de segregar na garrafa original os sedimentos decorrentes da polimerização de taninos ocorrida durante a longa guarda; e b) oxigenar o vinho jovem, ainda tânico e brilhante, de aromas ainda enclausurados e tímidos, de taninos ainda presentes, nervosos e às vezes abrasivos, é como provocar uma evolução express no fermentado, tornando-o mais aberto, comunicativo e macio.
Quase todos os vinhos poderão se beneficiar da decantação, que não se volta apenas ao serviço dos vinhos especiais, mas, ao contrário, beneficia também aos acessíveis tintos nossos de cada dia.
Nessa série de três posts dedicados ao decanter falarei, no próximo, de decantação de vinhos envelhecidos e dos cuidados com os vinhos em estágio de evolução avançado. No terceiro e último, falarei da aeração de vinhos tintos jovens e de brancos.
Bons Brindes!
Miguel Cordeiro Nunes
Advogado graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, com especialização em direito Processual Civil PUC-COGEAE e LLM – Direito do Mercado Financeiro e de Capitais, pelo IBMEC. Atua no setor financeiro e bancário em instituição financeira. Contato: miguelcn@terra.com.br