Sua Excelência, o Decanter! (3ª Parte de 3)

Aeração de Vinhos Jovens

Os vinhos ainda jovens, bons ou ordinários, caros ou baratos, sempre se beneficiarão da aeração, que pode ser feita com o decanter. O efetivo contato com o ar antes da degustação lhes fará muito bem, fazendo-os se abrir, tornando-lhes loquazes, expressivos na medida de suas qualidades naturais.

E não se impressione com a potência e com a intensidade de frutas que alguns vinhos jovens do novo mundo possam ter sem a decantação, mesmo quando acabam de chegar ao mercado. O desequilíbrio nos aromas e a abrasividade dos taninos sempre podem melhorar com a devida aeração.

Esse contato com o oxigênio, que pode ser otimizado com o uso de funis com saídas por orifícios laterais, que fazem o vinho se espalhar de modo uniforme pelas paredes internas do decanter, aumentam a exposição do vinho ao oxigênio, acelerando a liberação de aromas secundários e amaciando taninos jovens. Até mesmo o ato de girar algumas vezes o próprio decanter, assim como se faz com a taças antes da olfação, intensifica esse processo.

Obviamente, esse procedimento não faz milagres. Haverá vinhos que, por suas característica, apenas melhorarão ligeiramente, mas ainda continuaram duros e fechados. E na, maioria dos casos, experimentarão apenas uma evolução express, sem jamais entretanto propiciar aromas terciários que só o tempo traria, no caso dos vinhos com potencial de envelhecimento.

No entanto, no caso de vinhos de guarda ainda jovens, não ter os aromas terciários nessa evolução express forçada pela aeração com decanter é o preço a ser pago por quem, por alguma razão, não pode ou não pretende esperar pelo amadurecimento lento e natural do vinho.

No caso de vinhos que já saem prontos ou quase prontos da vinícola, o processo sempre será útil, beneficiando-os, tornando-os mais fragrantes e mais prazerosos ao palato.

Talvez valha reforçar a analogia aqui já reiterada de que o vinho sempre tem algo a dizer, um discurso mesmo, às vezes pronto ou por ser construído ao longo do tempo, na forma de aromas, texturas, sabores e até mesmo cores, que denotam seu estágio evolutivo.

 No caso de vinhos jovens tintos não decantados, a fluência desse discurso restaria comprometida, o interlocutor teria a impressão de que o vinho não se expressa bem, pois seus aromas seguem contidos, os taninos ainda incomodam. A aeração então faria esse papel de soltar a língua do vinho, para que ele se expresse melhor, com mais clareza, mais vocábulos.

Lembro-me da ocasião em que, definido o tema “Borgonha tinto” para um jantar harmonizado no restaurante paulistano Chef Rouge, em 2012, que seria precedido de uma degustação às cegas, reservei uma garrafa de um 1ºEr Cru Chambolle-Mussigny 2007, que trouxera da Borgonha dois aos antes. Imaginava-a adequada do ponto de vista evolutivo.

O colega que gentilmente se oferecera para catalogar as garrafas que dariam o ar da graça à ocasião observou que um degustador anotara no cellartrack (site em que se posta notas de degustação) que aquele vinho apresentava ainda sinais de estar prematuro, com taninos ainda por amaciar. Outro degustador discordava, dando-o por pronto.

Não tive dúvidas. Algumas horas antes do jantar, desarrolhei a garrafa e deixei o líquido decantando à temperatura ambiente, com um guardanapo recobrindo o bocal do decanter. Embora tivesse outras garrafas que pudesse escalar para a noite, aquela era a eleita e eu  não podia correr o risco de privar meus companheiros de mesa de compartilhar um vinho especial em sua plenitude. Eles mereciam o melhor, até porque eles próprios, imbuídos das mesmas e nobres intenções, trariam à mesa outros distintos de apelações borgonhesas como Vougeot e Chambertin, entre outros.

À noite, após ser reintroduzido em sua garrafa original com um funil, o 1ºEr Cru Chambolle-Mussingy mostrou-se radiante, feminino como é sua característica, no sentido de ser delicado e assertivo, com notas de frutos vermelhos maduros, vindo à tona morangos e cerejas, com complexidade notável que passava por notas de ervas e um certo toque de madeira muito suave, apenas para apimentar discretamente uma paleta de aromas e sabores muito delicada, mas ao mesmo tempo de forte personalidade. Por óbvio, concluí que a longa decantação beneficiara sobremaneira o vinho.

No ano seguinte, no mesmo Chef Rouge, num almoço com os mesmos e mesmas colegas, levei uma magnum (garrafa de 1,5L) do Erasmo 2007, que havia sido eleito o vinho do ano no Chile, em 2012, pelo guia Descorchados. Embora atribua importância relativa a tais guias, em que pese tratar-se esse de um dos melhores do gênero, sabia que o vinho seguia ainda relativamente contido, fechado, com taninos ainda presentes, por amaciar, embora finíssimos.

Havia comprado meia dúzia de garrafas normais do Erasmo 2007 para, ao longo do tempo, acompanhar sua evolução. A decantação era inevitável. Em degustação anterior do mesmo vinho pude comparar a diferença, aliás notável, entre uma garrafa decantada e outra servida sem decantação.

A Magnum foi vertida em dois decanters e o vinho respirou ali por quatro horas. De volta à garrafa com a ajuda de um funil, o vinho seguiu para o restaurante onde pode mostrar aos colegas, com o evidente benefício da decantação, muito do que oferecerá no futuro.

Ao contrário do reportado por uma amiga que abrira uma garrafa de mesma safra meses antes, sem fazer a decantação (pouco expressivo no nariz e na boca, apesar da potência e do corpo), o vinho estava expressivo e assertivo, com seus taninos ainda presentes mas amaciados e palatáveis, com relativo equilíbrio, mas, no conjunto, já harmonioso, marcado pela fruta, pela pujança, pelas notas complexas  decorrentes do bom uso de madeira, com discretas notas de chocolate, ótima acidez, enfim, o vinho mostrou-se com credenciais para buscar a maturidade, quando por certo brilhará muito mais.

A decantação também se presta a esse papel, o de poder nos dar uma noção do que virá pela frente nos anos de apogeu de um vinho com potencial de guarda, como é o caso do Erasmo, embora só o tempo dirá se o vinho confirmará as predições. Por ora, é um vinho que impressiona, muito bem feito e que evoluirá bem. Oportunamente poderei reportar como evoluíram as demais garrafas.

Na ausência de um decanter

É plenamente possível alcançar o benefício da oxigenação de um vinho jovem sem o auxílio de um decanter. Bastará que se use uma jarra de bojo largo em seu lugar. Mas até mesmo a taça de cada conviva poderá servir de pequeno decanter.

Coloca-se a quantidade adequada de vinho na taça, em torno de um terço de seu volume, gira-se suavemente a taça para que o líquido se agite e entre em contato com o ar e, por fim, espera-se algum tempo para degustá-lo.

Aliás, é comum a expressão “evolução na taça”, utilizada por degustadores profissionais e amadores. O próprio design de taças leva também em conta a área de contato do vinho com o ar, além da estética e outros inúmeros aspectos técnicos ligados à maximização dos prazeres de uma degustação.

Vide, por exemplo, o diâmetro mais aberto do bojo de uma taça de Borgonha, já que o vinho feito de Pinor Noir, por ser delicado, precisa de mais contato com o ar para volatilizar moléculas mais pesadas que vão se concentrar na parte superior da taça, mais fechada, onde serão aspiradas pelo nariz do degustador.

Quanto a isso, observe ainda o fundo de taça. Alguns minutos após ter sido sorvido o vinho, o fundo de taça em que remanesça um pouco do líquido revela aromas que não se percebem no início da degustação, quando a temperatura estava mais baixa. Isso dá ótimas pistas para a identificação do vinho, da uva ou das uvas de que é feito e de inúmeros detalhes de sua elaboração.

Mito: deixar o vinho respirar pelo gargalo

Pelo que se disse até aqui é fácil concluir que a área de contato do vinho com o ar é fundamental para sua oxigenação. Não devo então desperdiçar palavras com esse equívoco recorrente de se deixar o vinho respirando pelo gargalo, já que sua área de contato com o ar dentro de uma garrafa cheia é inferior a dois centímetros de diâmetro, de modo que apenas o líquido no topo da garrafa poderia se beneficiar de alguma aeração, que no caso não é efetiva e não cumpre seu papel.

Vinhos não filtrados

Como inúmeros vinhos atualmente não são filtrados, para assim, no caso de bons produtores, preservarem mais qualidades aromáticas e gustativas em detrimento de seu aspecto visual, que no mais das vezes poderá apresentar suspensão, a decantação também poderá ser útil para a separação de sedimentos, que aqui ocorrem não em razão do envelhecimento, mas pela falta de filtragem.

Aliás, adoro o charme de certos vinhos não filtrados, apesar de sua falta de limpidez. São diferentes, às vezes mais autênticos, possuem uma textura diferenciada que a alguns pode parecer defeito, mas que, para mim, marcam com um traço de originalidade, preservando características da cepa e do terroir que, no processo de filtragem, submergem em nome da limpidez, detalhe estético de relativa importância.

Deve-se dizer que, em nome da aparência, muito se sacrifica da qualidade dos vinhos por conta da filtragem que, se de um lado melhora o aspecto do líquido, tornando-o límpido, de outro atua como redutora de aromas e sabores mais complexos.

Vinhos Brancos e decantação

A decantação é também útil à degustação de vinhos brancos de grande estrutura, fermentados e/ou envelhecidos em barricas de carvalho novo, quando ainda longe de seu apogeu e marcados com certa dose de taninos provenientes da madeira. Sempre se beneficiam de uma aeração mais efetiva.

Até mesmo champagnes de alta gama podem ser, segundo sommeliers de renome internacional, decantados para essa aeração que lhes abra ao máximo os aromas e sabores. Confesso que jamais tentei decantar champagnes dessa estirpe, mas posso sempre comprovar os ganhos que jovens borgonhas brancos e de boa estrutura podem ter com a decantação feita com esse objetivo de aeração.

De volta à cena descrita no primeiro texto desta série: para uma noção do que experimentou o casal aos sorver goles de Barolo de safra antiga, decantado com a classe e destreza do experimentado sommelier que utilizou luz de vela para ler a movimentação dos sedimentos dentro da garrafa, em ritual de rara e poética beleza, faça um teste você mesmo, pedindo ao sommelier uma garrafa de vinho longevo, de safra velha, sugerindo-lhe a decantação com o uso da vela e acompanhe o processo. Caso ele não se mostre familiarizado, tente você mesmo, utilizando um isqueiro, por exemplo, e, na sequência, brinde com sua companhia ou com seus amigos um grande momento que, em decorrência também do vinho, se torne inesquecível.

Bons brindes e bom Carnaval!

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Miguel Cordeiro Nunes

Advogado graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, com especialização em direito Processual Civil PUC-COGEAE e LLM – Direito do Mercado Financeiro e de Capitais, pelo IBMEC. Atua no setor financeiro e bancário em instituição financeira. Contato: miguelcn@terra.com.br