Quando em 1982 Marshall Berman publicou “Tudo O Que É Sólido Desmancha no Ar” (ed. Simon & Schuster), registrou como subtítulo “a aventura da modernidade”. Que aventura? Encontrar-se numa situação de vertigem diante da atividade e energia do mundo moderno. Uma situação que denota a liquidez, o estado líquido do mundo – metáfora aberta sobre a perda das tradições. Pinceladas de Pollock ou desfragmentação de um homem descendo as escadas, como no quadro de Duchamp. Mancha. Aventura e liquidez encontram-se a partir do momento em que conhecemos a vertigem. “Um corpo que cai”, créditos iniciais: imensa espiral vertiginosa na “velocidade incrível da queda”. Hitchcock produz um filme moderno para um tema adiantado. Cidadão Kane e a Tropicália. Em “A Arte do Romance” Milan Kundera nos interroga: "O que é vertigem? Medo de cair? Mas porque temos vertigem num mirante cercado por uma balaústra sólida? Vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio debaixo de nós, que nos atrai e nos envolve, é o desejo da queda do qual nos defendemos aterrorizados." A partir do momento em que a tradição é – literalmente – “traída”, estamos livres. A liberdade é uma ocorrência líquida do espírito e da sociedade como um todo. Insatisfação é desejo de liberdade no contexto da tradição: tradire, traire. Entre tradição e traição, uma falácia. Os relacionamentos amorosos se configuram em permanentes traições na aventura da modernidade? O espírito em estado líquido espalha-se, alcança a política. Berman cita logo no prefácio: “Ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição. É sentir-se fortalecido pelas imensas organizações burocráticas que detêm o poder de controlar e frequentemente destruir comunidades, valores, vidas; e ainda sentir-se compelido a enfrentar essas forças, a lutar para mudar o seu mundo transformando-o em nosso mundo. É ser ao mesmo tempo revolucionário e conservador: aberto a novas possibilidades”.
Um pequeno trecho de uma entrevista a Bauman: “Tudo é temporário. É por isso que emerge a metáfora da "liquidez" para caracterizar o estado da sociedade moderna: uma incapacidade de manter a forma. Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades "autoevidentes". As coisas todas -empregos, relacionamentos, know-hows etc.- tendem a permanecer em fluxo, voláteis, desreguladas, flexíveis”.
Vertigem, liquidez, desmembramento, são o circuito sentimental dessas novas possibilidades. A situação em que - se você for pegar com as mãos - sequestrar o momento, ele já foi. E não necessariamente para frente, para o futuro. A líquida vida moderna é a constante ameaça da destruição. Alarmismo interno, externo, eterno. Insegurança e fragilidade, tudo o que não é possível permanecer-se sólido. Sentimentos oficiais desfigurados. O fetichismo de mercado é exatamente essa sensação efêmera do que consumimos, sentimos prazer, descartamos e a seguir desejamos mais e melhor. Líquida bolha dos desejos, o perigoso encaminhamento das coisas. O exagero da ciência que como diz Gilberto Gil não avança, mas encontra a natureza, é o desenvolvimento da nulidade da sensibilidade – um xilindró. “Portanto, não só a sociedade moderna é um cárcere, como as pessoas que aí vivem foram moldadas por suas barras; somos seres sem espírito, sem coração, sem identidade sexual ou pessoal — quase podíamos dizer: sem ser” – esta é a vertigem do líquido mundo moderno. Não que seja um problema exclusivamente contemporâneo. Os problemas de hoje tiveram que transitar por séculos a fim de tomar frente aos rebentos da sociedade. Assim são os tabus. Casamento homossexual, por exemplo, é uma formalidade em questão atual, mas desde sempre na história humana isso é natural. O amor segue mal definido, mas hoje se tem uma noção de que a principal referência tradicional tem que ser revista. Não serve mais como modelo o 'amor divino' - ele é perfeito e inalcançável, algo inacessível para os humanos. O amor líquido do Bauman tem sua razão de ser, é uma boa reflexão sobre a fragilidade dos vínculos, mas parte da premissa de que antes os laços eram mais firmes e estáveis - eram, realmente? Ou ficava no discurso? O fato de se ter relações mais longas não significava que eram genuinamente amorosas... Inclusive no “Manifesto do Partido Comunista” de Marx e Engels há uma metáfora que concerne tanto o “monstro” que criamos (a vida líquida moderna) quanto o amor líquido (o bug do milênio, a catástrofe das aproximações): “É como o feiticeiro incapaz de controlar os poderes ocultos que desencadeou com suas fórmulas mágicas” (Manifest der Kommunistischen Partei). A modernidade é o transitório, o pendente. Em “As Flores do Mal”, de Charles Baudelaire, podemos encontrar o seguinte verso: “a forma da cidade muda bem mais que o coração de uma infiel.” Fluido intercâmbio do homem com o borrão que o cerca: sua cidade. Já na ópera de Verdi temos a famosérrima “La Dona é Mobile” – a mulher é instável. circunstância dionisíaca já sem gênero atualmente – o homem é Mobile. O Celular é Mobile – a comunicação social é a bagagem de cigano, o nômade, o instável, o homem que deve levar o Bonsai para apresentar a árvore de seu país ao outro – arquivo compacto, transferência, Zip. E o cinema? Onde cabe a janela de um palácio ou o templo de Zeus no Olimpo numa nano-janela atual, a tela de um celular? O som no fone de ouvido pode ser i-Max. Mas o máximo do cinema, sem dúvida, não permanece no num i-Max. Tarkovski, por exemplo, não cabe nos limites 4:3 da televisão paga. Por isso que o Telecine Cult não exibe Tarkovski. Entre bordas, amor líquido promove o transbordamento da vida. Característica do cinema moderno e pós-moderno: linguagem moderna. Linguagem moderna contém ironia. Ironia dos gif’s, dos tumblers, dos sites de humor ácido, dos quadrinhos de Angeli, Laerte, Iturrusgarai. Linguagem moderna, cinema moderno, a vida (real) moderna. “Não surpreende, pois, como afirmou Kierkegaard, esse grande modernista e antimodernista, que a mais profunda seriedade moderna deva expressar-se através da ironia. A ironia moderna se insinua em muitas das grandes obras de arte e pensamento do século passado; ao mesmo tempo ela se dissemina por milhões de pessoas comuns, em suas existências cotidianas.” Abaixo dois parágrafos contundentes do livro de Marshall Berman: Tomemos uma imagem como esta: “Tudo o que é sólido desmancha no ar”. A ambição cósmica e a grandeza visionária da imagem, sua força altamente concentrada e dramática, seus subtons vagamente apocalípticos, a ambiguidade de seu ponto de vista — o calor que destrói é também energia superabundante, um transbordamento de vida —, todas essas qualidades são em princípio traços característicos da imaginação modernista. Representam com exatidão a espécie de coisas que estamos preparados para encontrar em Rimbaud ou Nietzsche, Rilke ou Yeats — “As coisas se desintegram, o centro nada retém”. De fato, essa imagem vem de Marx; não de qualquer esotérico manuscrito juvenil, por muito tempo inédito, mas direto do Manifesto Comunista. Essa imagem coroa a descrição que Marx faz da “moderna sociedade burguesa”. As afinidades entre Marx e os modernistas tornam-se ainda mais claras quando observamos a passagem inteira de onde a imagem foi extraída: “Tudo o que é sólido desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente forçados a enfrentar com sentidos mais sóbrios suas reais condições de vida e sua relação com outros homens”. A segunda cláusula, de acordo com a qual se destrói tudo o que é sagrado, é mais complexa e interessante do que a convencional assertiva materialista do século XIX segundo a qual Deus não existe. Marx se move na dimensão do tempo, tentando evocar o próprio curso de um drama e um trauma históricos. Ele diz que a aura de santidade subitamente se ausenta e que não podemos compreender a nós mesmos no presente sem nos confrontarmos com essa ausência. A cláusula final — “e os homens são finalmente forçados a enfrentar...” — não apenas descreve a confrontação com uma realidade perturbadora, mas vivifica-a, forçando-a sobre o leitor — e, de fato, sobre o escritor também, já que “homens”, die Menschen, como diz Marx, estão todos aí juntos, ao mesmo tempo agentes e pacientes do processo diluidor que desmancha no ar tudo o que é sólido.
Onde faremos um coeso cruzamento entre a destruição dos valores, a líquida vida moderna, o cinema e o amor? Som e imagem. Glauber Rocha diz em uma entrevista: “Não é teatro, não tem história. O cinema não precisa contar uma história. O filme é para ver e para ouvir, é um barato audiovisual”.