Dica de filmes e livros por Luciana Andrade

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Dica de Livro: Ensaio sobre a cegueira de José Saramago

"Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, é uma parábola sobre a humanidade, suas virtudes e suas mazelas. Utilizando dois vieses literários bastantes bastante conhecidos, a saber, os absurdos altamente plausíveis de Kafka e a liberação de amarras sociais, decorrente de um cataclisma, tão cara à ficção científica, o escritor português fala sobre os valores que lhe são caros e sobre o que perdemos. Jack London fez isso, e também Cormac McCarthy, e ambos se saíram bem nestes esforços fora de sua área de atuação.

Coisa de velho, alguns dirão. Até porque Saramago escreve como o velho que é. É chegado aos gracejos pomposos e à inversão estrutural, algo que pode, enfim, emprestar um encanto extra a passagens cotidianas. O livro não é adaptado ao português brasileiro na grafia, e nem no vocabulário. O dicionário não se faz necessário, mas a leitura, em certos pontos, pode atravessar terrenos acidentados.

A uma parábola não poderiam faltar as metáforas, as analogias; a narrativa toda caminha por estas linhas duplas e ambíguas; Saramago sempre pode estar falando de outra coisa. O grupo que segue para a casa do médico e da esposa do médico, por exemplo, é um núcleo familiar típico: pai, mãe, avô, filho disfuncional, filha eufemisticamente misteriosa, cunhado e cunhada ou qualquer coisa assim. São indivíduos soltos, agregados apenas ao nível de casal, quando muito, e que retornam a um grupo de formato tão caro à igreja.

Diversas passagens do manicômio podem ser vistas como reflexos das especulações de Dante Alighieri sobre os três reinos para os quais o ser humano segue depois da existência mundana. As chamas, as provações, elas rescendem a Purgatório, por exemplo. A história pode ser lida desta forma, ou avaliada de um ponto de vista sociológico; o manicômio é um micro-universo, onde se repetem os padrões de comportamento do mundo exterior.

Saramago peca ao tornar seu laboratório de análises tão evidentemente delineado. Ele lembra seu contemporâneo Lars Von Trier neste aspecto. Ambos buscam, em alguma camada, emular Kafka, e falham de formas e intensidades distintas. Não que isto invalide seus esforços. Saramago consegue prender a atenção do leitor, embora este tenha de aturar alguns recursos literários um tanto duvidosos. As linhas de diálogo não são descoladas da narração em Saramago; é um efeito de narrativa oral, e exige que o leitor encare parágrafos longos, que podem chegar à casa de três ou quatro páginas.

Pode parecer um livro desconfortável, ainda mais com a intensidade do amor que Saramago demonstra por excrementos e outras excrecências humanas. Ele rejunta as frestas de seu laboratório humano com badalhocas, cocôs, merdas, toletes, pisados, repisados e amolecidos por uma chuva que não redime, exceto no momento correto, já ao final do livro. Há apenas uma chuva que lava algo, e ela, claro, também pode ser lida na dimensão metafórica.

Dá para imaginar, e sem esbranquiçar os olhos, um escritor rabugento de fartas sobrancelhas observando as ruas e modelando sua cidade pós-apocalíptica com os tijolos lúgubres das cidades que ele visitou. Como Faulkner, Saramago é um ermitão, e aos ermitões causa horror o estado lamentável das vielas de nossos espaços urbanos.

Agora de manhã, logo depois da chuva, eu caminhava, chegando ao João Paulo. Tomei um atalho pelo lado de um viaduto, e a trilha havia virado um pequeno canal para uma água escura. Esgoto. A céu aberto. Correndo com a gravidade entre fragmentos maiores e menores de lixo. Perto da badalhoca bem fornida de algum cachorrão de apartamento, cujo tutor olhou para um lado, olhou para o outro, e ali deixou para que algum passante abastecesse o seu solado com massa detentora de posteridade odorífera. Não falta muito, então, apenas alguns cegos andando como zumbis, outros tantos mortos com cães a revirar suas entranhas fétidas, para concretizar um mundo dantesco de Saramago.

Saramago guarda duas cenas de impacto, provavelmente as duas de maior impacto pictórico, para menos de dez páginas do final do livro. Com elas, simbolicamente, parecem se liberar as engrenagens para que o mundo volte a enxergar.

Sim, isto é um spoiler, mas há de ser nada, pois você viu o filme, não viu?

A mulher do médico pensa que enfim chegou sua vez de cegar, mas a cidade continua diante de seus olhos. O livro acaba. O mundo criado por Saramago, ou melhor, uma criatura de Saramago feita de pedaços da imundície urbana que o horroriza, este mundo, entretanto, pode acabar assim? Provavelmente não. Os bons livros estão recheados de outros livros, de outras linhas, ou deixam um solo fértil para continuar. O que acontecerá com um mundo desorganizado e potencialmente envergonhado que, subitamente, volta a enxergar? É um pós-pós-apocalipse, como todos os ingredientes de um pós-coito indevido e indesejado.

Voltando ao impacto, dá-se na cave do supermercado, com os fogos-fátuos emanando da última camada de culpa que a mulher do médico inflinge a si mesma. Os gases que emanam e iluminescem naquele espaço gerador de claustrofobia são chamas espirituais na parábola de um escritor ateu.

A obsessão analítica de Saramago segue para dentro de uma igreja, com o cão das lágrimas a servir de paladino. Algum egresso do Ceart faz uma intervenção em todos os quadros, e torna-se um Banksy involuntário num mundo em que ninguém nota que houve uma profanação em nome de um conceito. Deve ser o momento em o velhinho barbudo resolve parar o experimento. Só pode".

Fonte: http://gilvas.wordpress.com/2011/11/29/jose-saramago-ensaio-sobre-a-cegueira/

Luciana Andrade

 

Bibliotecária e Psicologa formada há alguns anos.. Atua na área de psicologia com consultório e no SOS Ação mulher e família como Psicologa voluntária . Cursou biblioteconomia por adorar os livros e assim ficou conhecendo mais profundamente a história literária. Através de filmes e livros consegue entrar em mundos reais, imaginários , fantásticos o que deixa o coração e a mente livres para conhecer , acreditar e principalmente sonhar.