Há vinhos brancos muito encorpados, que em degustações às cegas podem induzir o degustador a achar que se trata de um tinto, a ponto de poderem acompanhar carnes vermelhas magras (a depender do preparo). Por outro lado, há tintos leves que se prestam a acompanhar pratos igualmente leves como, por exemplo, carne branca com molhos marrons ou de consistência razoável.
Portanto, aquela regrinha mencionada no post anterior (tinto com carne vermelha; branco com carne branca e peixes), que para alguns é mais uma exceção do que uma regra, é, na verdade, apenas um portal de acesso a um universo de detalhes que podem ser explorados gradativamente, em complexidade crescente, para uma harmonização mais próxima da perfeição ou, pelo menos, do seu gosto pessoal.
Com conhecimento básico aplicado às escolhas que venha a fazer, é possível que você logo descubra o prazer especial de ouvir um elogio do tipo: “o vinho de sangiovese que você escolheu está ótimo e esse papardele ao ragu de cordeiro, maravilhoso!”.
Talvez o vinho, individualmente, não seja o máximo, assim como o ragu do papardele nem seja tudo aquilo, mas a harmonização que você sugeriu funcionou e teve o poder de melhorar tanto o vinho, quanto o prato, como se o resultado final percebido fosse maior que a simples soma das partes: 2+2=6 (a matemática do vinho é peculiar). O elogio a você não teria sido merecido?
O contrário infelizmente também acontece. Um ótimo vinho e um prato saboroso podem juntos resultar em “tragédia” do ponto de vista de harmonização: se te servirem um Cabernet Sauvignon jovem, potente, encorpado, acoólico e ainda tânico, portanto, um vinho de grande estrutura, para escoltar uma posta de cherne com camarões flambados sobre purê de mandioquinha e ervas finas, o prato será francamente atropelado pela força dos aromas e sabores pujantes do vinho, assim como por sua textura ainda adstringente (e veja que aqui a aplicação da regrinha polêmica de branco com o peixe evitaria esse disastre).
Na boca e no olfato, o resultado seria menor que a soma das partes: 2+2=3. E, fora o preço “salgado” da desaventurada harmonização, pouca importância teria se o tinto recebeu 95 pontos de Robert Parker e menções elogiosas de H. Jonhson (críticos renomados), nem se o prato está em menu assinado por chef de renome. Em termos de harmonização, como em muitas áreas, o valor elevado nem sempre garante satisfação, podendo consitir, às vezes, em desperdício e estéril demonstração de luxo e ostentação.
Note a importância que o corpo do vinho e do prato, para ficar apenas nesse ítem, tem no resultado dessa “relação”, que pode ser tão complexa quanto as relações humanas, tal a diversidade de fatores que as tornam tão ricas.
Vale lembrar, entretanto, que, dada a subjetividade e diversidade de gostos, não há regras absolutas nessa seara, se é que há algo próximo disso. Há apenas um conjunto de associações consagradas, ditas clássicas, que, de certa maneira, por agradar a muitos, acabam servindo de norte a sommeliers de toda parte, influenciando a bibliografia disponível sobre o tema.
Mas viu como não é tão difícil? O básico é simples, e a complexidade só virá conforme crescer o interesse pelo tema, mas, a essa altura, se você ainda estiver interessado em se aprofundar, é porque já terá percebido o alto retorno que o uso desse conhecimento pode dar a você e a quem tiver o privilégio de desfrutar de sua companhia.
Futuramente, um artigo específico tratará de detalhes como harmonização por similaridade (pratos leves com vinhos leves) ou por contraste (doce com salgado: foie gras com sauternes), e uma relação de combinações clássicas (como jamon com jerez).
De qualquer modo, não se leve a sério demais nessa questão da hamonização perfeita. É tudo uma deliciosa brincadeira. Mas se a harmonização em um jantar não estiver prefeita, há soluções, como a proposta pela grande crítica inglesa Jancis Robinson : “Limpe a boca. Existe uma solução simples para o problema de comer alimentos inadequados e usufruir de vinho ao mesmo tempo. Você pode ‘neutralizar’ a boca depois de uma porção de comida mastigando algo absorvente como, pão, ou bocechando com um pouco de água. Um pedaço de pão após uma salada muito temperada ou alcachofras limpa a boca, deixando-a pronta para degustar um vinho delicioso”. Como Degustar Vinhos, Jancis Robinson, Editora Globo, 2010,pág. 191)
Saber quais os tipos de vinho existentes (vide post de 09/12/13), ter noções de harmonização (post de 15/12/13 e o de hoje – 21/12/13) e conhecer as principais uvas tintas e brancas (nos futuros posts), são passos importantes na sistematização do conhecimento sobre o vinho, uma porta de entrada para um universo de possibilidades infinitas.
Dica: registre suas percepções. É a melhor maneira de se auto doutrinar na busca dos nomes que qualifiquem as tuas sensações, assim como é o meio mais eficaz de fixar as sensações no banco de dados da memória, que sempre será ativado toda vez que o modo”degustando” estiver acionado.
Observe que conforto, requinte, prazer, amizade e cultura é apenas parte dos targets possíveis que o manejo de noções de enogastronomia podem propiciar às pessoas que se disponham a olhar esse universo do vinho com um pouco de atenção. E saiba que isso não tem a ver com luxo. Tem a ver com o prazer de viver a vida de maneira plena, sábia e feliz.
Bons brindes, boas harmonizações e Boas Festas!
Vinhos degustados
Columbia Crest Merlot, 2008, EUA,Washington State. Corte de Merlot (87%), Cabernet Sauvignon (12%), Cabernet Franc (1%). Visual: cor ruby profunda com halo ligeiramente alaranjado. Olfativo: aromas intensos e profundos de frutos vermelhos maduros, toque suave de baunilha. Gustativo: ataque pungente, corpo médio, taninos ainda presentes, mas sutis e finos, com leve adstringência. Toque de madeira e álcool generoso, provocando calor após a deglutição. Fim de boca longo. Acidez marcante torna o vinho vivaz e muito interessante. Talvez possa ainda evoluir um pouco em garrafa, mas isso é incerto. Só testando agora, registrando e abrindo outra garrafa em dois anos para saber se melhorou, se ficou mais complexo ou se não se beneficiou. Mas poderá declinar, perdendo fruta, acidez e, nessa hipótese, o vinho então estaria agora em seu apogeu. De modo geral, vinho agradável, frutado, de boa estrutura e pode acompanhar bem carne vermelha de modo geral e pratos de médio corpo. Degustado em 01/12/13 (no Spirito Divino, Shopping Eldorado, R$ 71,00).
Villa Antinori IGT, 2010, Itália, Toscana. Sangiovese (55%), Cabernet Sauvignon (25%), Merlot (15%), Syrah (5%). Visual: cor ruby, sem halo de evolução, aromas de frutos vermelhos frescos e romã, madeira muito suave. Na boca ainda jovem, um tanto nervoso, mas leve e equilibrado de modo geral, algo de trufa, ótima acidez. Vai bem com massas de molho de tomate e carnes leves. Degustado em 01/12/13 (R$ 116,00, na Winebrands.com.br).
Norton Perdriel Coleccion, Cabernet Sauvignon, 2008, Argentina, Mendoza, 14,5% de álcool. Visual: lágrimas fartas e lentas, cor ruby intenso, ligeiro halo aquoso. Olfativo: frutos vermelhos intensos e frescos, cassis e amoras. Gustativo: boa estrutura, de médio corpo para encorpado, equilibrado, com taninos redondos e finos, acidez marcante que torna o vinho vivaz. Boa persistência gustativa. No retro-gosto, nada digno de nota, além das frutas. Em síntese, vinho frutado, de corpo médio, com álcool generoso, bastante equilibrado e vivaz dada a ótima acidez. Vai bem com carne vermelha em preparos substanciosos. Degustado em O1/12/13 (R$ 71,00, no Spirito Divino, Shopping Eldorado).
Haras de Pirque, Carmenère, 2011, Chile, Vale do Maipo. Carmenère (85%) e Cabernet Sauvignon (15%). Análise visual: Rubi intenso, lágrimas fartas, sem halo de evolução. Olfativo: frutos vermelhos intensos, madeira sutil, aroma quase adocicado, lembrando calda de amoras, algo de especiarias. Alguma complexidade na boca. Taninos ainda presentes, mas muito finos, quase macios. Boa estrutura, ligeiramente mais leve que o Cabernet Sauvignon anterior (Norton), com ótima acidez e álcool menos perceptível e bem equilibrado com o restante dos componentes. Boa persistência. Degustado em 01/12/13. (R$ 53,00 na winebrands.com.br).
Obs.: para “lágrima”, “halo” e “retro gosto”, vide notas de rodapé na degusração do Don Melchor 2008, post de 09/12/13.
Miguel Cordeiro Nunes
Advogado graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, com especialização em direito Processual Civil PUC-COGEAE e LLM – Direito do Mercado Financeiro e de Capitais, pelo IBMEC. Atua no setor financeiro e bancário em instituição financeira. Contato: miguelcn@terra.com.br