Temos visto, com uma frequência assustadora, notícias a respeito de violências sexuais das mais terríveis. Além dos noticiários que fazem com que nos coloquemos no lugar das vítimas, aterrorizando-nos, como no caso do estupro de uma adolescente por mais de 30 homens, muitas de nós já passamos por algum abuso.
Infelizmente, grande parte desse tipo de violência contra crianças e adolescentes acontece por parte de pessoas muito próximas, até mesmo dentro de casa, por parte de pessoas que teriam o papel de proteger e ajudar aqueles que se transformam em suas vítimas. Estas, completamente entregues a uma figura “poderosa” em sua vida, sofrem o abuso muitas vezes sentindo-o como uma expressão de afeto ou mesmo uma brincadeira, passando a compreender depois o que realmente ocorreu.
Precisamos entender algo fundamental em relação ao desenvolvimento psicossexual da menina: ela busca seduzir o pai quando pequena, na medida em que é apaixonada por ele, que é seu herói, em um momento, por assim dizer, que chamamos de “Complexo de Édipo”. No entanto, ela não tem qualquer condição, obviamente, de saber o que é o sexo propriamente dito ou o que é adequado ou não a respeito de como acariciar e ser acariciada. Ou seja, a criança busca seduzir o pai, mas este não pode cair na sedução da criança, até porque esta sedução não é aquela mesma que seria exercida por uma mulher! Faz parte do desenvolvimento infantil a menina poder chegar a dizer que se casará com o pai quando crescer, mas isto não é nem de longe um consentimento para certas carícias. A criança (ou mesmo adolescente) não tem qualquer recurso interno para compreender o que está acontecendo, como nós adultos compreendemos.
No entanto, vemos tantas situações em que pais ou outras autoridades abusam de quem está vulnerável e clamando por ser cuidado, seja na infância, adolescência ou na idade adulta, como nos casos das mulheres abusadas pelo médico Roger Abdel Massih. A condição é sempre de vulnerabilidade, de modo que, em não havendo consentimento ou capacidade plena para decidir ter ou não ter relação sexual com alguém, esse alguém está necessariamente trazendo sequelas psicológicas à vítima, as quais variarão de acordo com as experiências a que se submeteram; nesse sentido, a idade em que elas ocorreram, a diferença de idade entre o abusador perverso e a vítima, a intensidade da violência... Tudo isso conta, mas também e de um modo muito importante, a forma como isso ficará registrado dependerá do potencial de cada um para receber essas marcas e, posteriormente, para ressignificá-las mediante a análise e conhecimento de partes desconhecidas de si mesmo.
O termo “resiliência” refere-se, de acordo com o Dicionário Aurélio, à “Propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora duma deformação elástica”, de modo que os psicólogos empregam-no para descrever a capacidade de adaptar-se criativamente e de transformar-se a despeito de condições de grande adversidade e sofrimento. Desse modo, esta capacidade é absolutamente relevante para a superação de situações relacionadas a esse tipo de violência, considerando-se que a deformação de que falamos é na alma e que a tensão que a causa é psíquica e é ela que precisa encontrar as vias de descarga, por meio da elaboração suficiente desses conflitos.
Os conflitos a que nos referimos podem facilmente dizer respeito a fantasias de culpa, de que houve responsabilidade pelo ato perverso de outrem. O sentimento de culpa pode ser dilacerante e deve ser trazido à tona e compreendido em suas raízes, com a oportunidade de nomear todos os sentimentos envolvidos com alcance a questões que, por estarem escondidas no inconsciente, “puxam nosso tapete”. Quanto maior nossa resistência para fazermos estas descobertas e entrarmos em contato com essas ideias inconscientes, menor será nossa capacidade transformadora; mas, por outro lado, sendo grande a vontade de superação e de alcançar a liberdade em relação a essas angústias, maiores podem ser a esperança e a coragem necessárias para a grande conquista.
Leticia Kancelkis
Coluna Psicologia
Formada em Psicologia desde 1999, Mestre e Doutora em Psicologia Clínica de referencial Psicanalítico pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC Campinas). Autora dos livros: “O Sol Brilhará Amanhã: Anuário de uma mãe de UTI sustentada por Deus” e “Uma menina chamada Alegria”. Atua como Psicóloga Clínica, atendendo também por Skype. Contato:leticia.ka@hotmail.com