Acumulador? Eu? Coluna Psicologia por Leticia Kancelkis

Se você é capaz de escolher o que vai para o lixo ou não vai; adquire apenas aquilo de que realmente precisa; organiza seus ambientes de forma minimamente saudável, deixando cada espaço com sua funcionalidade “livre” para ser usufruída; se não tem observado as pessoas ao redor afastando-se de você (a fim de se protegerem do ambiente insalubre em que vive), fique tranquilo. Você não é um acumulador.

Só uma questão a ser considerada: Os acumuladores compulsivos não se reconhecem como tais. Portanto, a probabilidade de avaliar a si próprio e chegar claramente à conclusão de que é um acumulador compulsivo parece ser pequena.

Você pode perguntar, diante de seu prazer em saber que tem 322 pares de sapatos e da ânsia de possuir o calçado de número 323: “Qual a diferença entre acumuladores compulsivos e colecionadores?”

Bem, os colecionadores colocam os objetos específicos que têm prazer em possuir nos devidos lugares, organizadamente. Esses objetos específicos (sapatos ou selos ou carros antigos, por exemplo) não trazem a angústia de ter que escolher o que deve ser descartado e o que não deve, como acontece com os acumuladores compulsivos. Isto porque estes últimos guardam “qualquer coisa” e não algo em especial que seja carregado de um determinado simbolismo.

Eles não parecem capazes de suportar o peso da responsabilidade de fazer escolhas, porque estas pressupõem necessariamente uma perda, a qual é sentida como impossível de aguentar. Se alguém escolhe seguir pelo caminho à direita, necessariamente perde a oportunidade de ir pela esquerda; e se o caminho da esquerda fosse melhor do que o da direita? Isto pode ser vivenciado sob a forma de uma dor sem igual. Os conflitos inconscientes, nestes casos, são poderosos o suficiente para paralisar a pessoa em uma condição psíquica que a impede de alcançar a satisfação: em forma de desejo, de uma falta ou um vazio que jamais será preenchido.

Com isto, mantém-se o ciclo do acúmulo sem fim, como uma fome insaciável. O sofrimento dos acumuladores compulsivos é imenso e eles, via de regra, isolam-se tendo como companhia tão somente a dor que faz com que guardem, guardem e guardem coisas velhas, novas e lixo, de forma indistinta.

Na clínica de Psicologia temos a oportunidade de atender casos que, ainda que não sejam os relatados aqui, revelam fortes indícios de que o ato de guardar certos objetos ou desfazer-se deles apresenta uma relação muito íntima com ideias inconscientes e com como se pode lidar ou passar a lidar com elas, após algum período de tratamento/análise.

Alguém que traz ao psicólogo queixas iniciais de sofrimento por perdas ou separações significativas, por exemplo, pode passar a relatar ter conseguido descartar objetos reconhecidos como inúteis só em determinado momento do tratamento/análise. Ou seja, a pessoa não reconhecia, no início do trabalho psicanalítico, o fato de ter guardado certas coisas desnecessárias durante longos anos, mas após algum tempo do processo, passa a poder não somente reconhecer isto, mas descartá-las. Isto acontece porque ela alcançou mudanças internas profundas que refletem visivelmente em novas e mais saudáveis possibilidades de se “relacionar” com o mundo. 

Leticia Kancelkis

Coluna Psicologia

Formada em Psicologia desde 1999, Mestre e Doutora em Psicologia Clínica de referencial Psicanalítico pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC Campinas). Autora dos livros: “O Sol Brilhará Amanhã: Anuário de uma mãe de UTI sustentada por Deus” e “Uma menina chamada Alegria”. Atua como Psicóloga Clínica, atendendo também por Skype. Contato:leticia.ka@hotmail.com