O sommelier candidato - Coluna Vinho por Miguel Nunes

 

Um proprietário de vinícola renomada precisa contratar um sommelier e, após anúncio, recebe trinta currículos e se interessa por cinco candidatos, chamando-os para testes teóricos e práticos.

 

Na entrevista com prova prática, um dos candidatos, apesar de profissional viajado, transparece desleixo no vestuário e um certo ar despreocupado, não inspirando confiança. Mas o proprietário da vinícola, e também examinador, decide submetê-lo aos testes, certo de que os resultados confirmariam sua impressão de insucesso do candidato:

 

- O senhor, por gentileza, descreva as três amostras de vinhos colocadas à sua frente.

 

O rapaz contempla a primeira taça que empunha com estilo profissional e, contra a luz, observa a cor e os reflexos do vinho. Em seguida agita a taça em suaves movimentos circulares e vê a formação de lágrimas em sua parede interna. Aproxima-a do nariz e, circunspecto, aspira os eflúvios voláteis que se desprendem do rubro líquido. Finalmente a traz à boca para sorver parte do  generoso  líquido, fazendo-o variar de posição dentro da cavidade bucal, passando-o do de um lado a outro da língua. Após a deglutição, fecha os olhos e, enfim, dispara:

 

- Tinto, vermelho rubi de boa intensidade, com ligeiro halo de evolução, límpido e de pouca transparência, com fartas lágrimas. Sem aromas defeituosos, sendo portanto franco. Notas comedidas de frutos negros maduros, presente ainda especiarias como cravo e pimenta do reino preta, e notas de café e chocolate, denotando passagem em barricas de carvalho. Fez fermentação malolática. Na boca, médio corpo, taninos ainda presentes, mas macios e finos, sem amargor nem adstringência digna de nota, boa acidez e álcool generoso, girando em torno de 13,5%. Bem equilibrado. O Retrogosto  lembra defumados. Média concentração de fruta e boa persistência aromática, girando em torno de sete segundos. Trata-se de um vinho de assemblage, de bom nível, de média complexidade, bem elaborado, podendo ser um vinho do sul do Rhône, um Chateneuf-de-Pape, com oito a dez anos de guarda. Evoluirá ainda por uns dois ou três anos em garrafa até atingir seu apogeu.

 

Surpreso e contrariado com a performance de quem supunha não pudesse corresponder às expectativas, o proprietário da vinícola anota em sua caderneta: “100%”, e registra com um tique o acerto para   assemblage, apelação, graduação alcoólica, passagem em barricas, tempo de guarda e descrição geral do vinho. Era de fato um Chateauneuf-du-Pape médio, com oito anos guarda.

 

Após o mesmo ritual de análise do segundo vinho, o candidato dispara novamente, com serenidade:

 

- Branco, de cor amarelo palha, límpido, translúcido, com brilho denotando sua acidez.  Franco. Aromas de frutos cítricos, notas de limão siciliano e maracujá, aspargo, grama cortada, toques florais. Nota muito sutil de madeira. Na boca, ótimo ataque, de corpo leve, discreta untuosidade, boa acidez, 12% de álcool, boa concentração de fruta e longa persistência. Vinho jovem, equilibrado, com três anos de safra, um Sauvignon Blanc bordalês, em possível corte com Sémillon.

 

“Ah haaa!”, pensa o examinador. Esse vinho não passou em madeira! Mas, em seguida, para sua decepção e surpresa ainda maior, lê na ficha técnica “corte de sauvignon blanc e sémillon, com estágio por três meses em barrica de terceiro uso”. O examinador confirma a informação com o sommelier chef organizador da seleção e, por fim, anota consternado mais um acerto de 100%, e segue ouvindo a descrição do terceiro vinho:

 

- Tinto, de cor vermelho rubi, com halo alaranjado,...notas discretas de  frutos vermelhos, toques suaves de alcatrão....Cepa do Piemonte, mas não é um Barolo... nem Barbaresco...lembra um vinho da apelação mais ao norte, da DOCG de Gattinara...

 

O examinador não crê no que houve. Mais um acerto de 100%. Ele se retira por três minutos e, na sala contígua, faz um pedido incomum à sua bela assistente.

 

Cinco minutos depois uma quarta amostra é trazida por ela ao candidato: no interior da taça ISO, uma quantidade de urina resfriada, que na cor amarela lembrava um chardonay não filtrado. Consternação agora no semblante do candidato, mas ainda assim, após o ritual de análise técnica, ele enfim dispara:

 

- Urina humana... de morena de uns vinte e três anos, grávida de 3 meses e, se não me derem logo esse emprego de sommelier, digo quem é o pai.


Essa anedota de autor desconhecido, adaptada para a demonstração de uma descrição técnica, serve ao propósito de introduzir uma das muitas e variadas formas de descrição de vinhos, pois, como se sabe, a degustação é composta por uma fase sensorial (exame sensorial, percepção, impressões) e por uma fase intelectual (descrição geral ou analítica das características do vinho).

A descrição também se presta ao objetivo de transmitir as características do vinho a quem não o degustou, de modo que um consumidor potencial possa decidir pela compra de determinada garrafa.

Assim, é comum em catálogos descrições sucintas e saborosas tais como:

- “tinto de cor viva, fruta madura, cerejas ; notas florais, final longo e agradável”.

Algumas vezes a descrição é mais abrangente:

-“cor bela e escura. Aromas de fruta madura, mirtilo, amoras pretas. Na boca, bom ataque, com dominância do quente, do doce decorrente do álcool; fim de boca médio, com leve amargor, e discreta adstringência. Persistência aromática média. Um tinto médio que ainda evoluirá na garrafa”.

Cotidianamente, o esforço descritivo dos tipos acima dão conta da demanda de explicar minimamente o perfil visual, aromático e gustativo de um vinho. Uma boa forma de sair do “gostei” ou “não gostei”,

Mas, basicamente, descreve-se da maneira como feita pelo personagem “canditato a sommelier” em ambientes de degustação, geralmente entre profissionais que trocam informações sobre os vinhos, em provas de cursos e concursos de sommelier, enfim, em situações em que a descrição deve ser mais minuciosa, cobrindo informações relevantes extraídas das três fases obrigatória de análise do vinho.  

Tais descrições são meio auto explicativas, mas por vezes faz uso de linguagem codificada, de domínio de profissionais da área, tornando-se às vezes herméticas para consumidores não afeitos a esse nível de esforço descritivo. Ao final, uma “tradução” da descrição do primeiro vinho analisado pelo candidato a sommelier.

Bons brindes! 

 

Tradução da descrição do chateneuf-du-pape

Análise visual

- Tinto, vermelho rubi de boa intensidade: a cor, o tom e a aintensidade.

- com ligeiro halo de evolução: indicativo do estágio evolutivo. No caso, entrando na fase madura.

- límpido e de pouca transparência: sem suspensão e com muito extrato de cor, escuro, dificultando a transparência (mede-se passando o dedo por trás da taça, tentando enxergá-lo.

- com fartas lágrimas: indica que o vinho tem teor de álcool importante, de 13,5% ou mais.

                                                                                                                      

Análise olfativa:

- sem aromas defeituosos, sendo portanto franco: não tem doença da rolha (TCA), não está oxidado, não é foxado (sem antranilato de metila, ou seja, não foi feito com uvas de mesa, não viníferas)

- notas comedidas de frutos negros maduros: 1ª família aromática: frutas. Pouca fruta em razão de não ser um vinho jovem, ainda assim percebe-se que o vinho foi feito com uvas num ótimo ponto de maturação.

-  presente ainda especiarias como cravo e pimenta do reino preta: 2ª família aromática: especiarias.

- e notas de café e chocolate, denotando passagem em barricas de carvalho: 3ª família aromática: empireumáticos. Provenientes da barrica tostada em seu interior.

- fez fermentação malolática: durante a vinificação, numa segunda fermentação, posterior à alcoólica, a malolática foi induzida com elevação da temperatura do mosto, de modo que as leveduras passaram a transformar o ácido málico em ácido lático, reduzindo a sensação de acidez.

 

Análise gustativa:

- na boca, médio corpo: sensação de peso médio na boca, dada pelo álcool e pelos extratos sólidos.

- taninos ainda presentes, mas macios e finos, sem amargor nem adstringência digna de nota: denota a qualidade dos taninos, medida pela ausência de amargor e pela ausência de rugosidade excessiva, com adstringência aceitável.

- boa acidez: qualidade que torna o vinho gastronômico.

- e álcool generoso, girando em torno de 13,5%: sensação de calor na boca.

- bem equilibrado: o tripé álcool, taninos e acidez compõe um conjunto harmônico, agradável.

- o Retrogosto  lembra defumados: pela via retronasal por vezes se percebe algo não detectado na boca e na aspiração direta. Aqui percebeu-se o defumado.

-  média concentração de fruta: com o passar do tempo, no vinho de guarda as frutas cedem espaço a outras famílias aromáticas e vai perdendo a intensidade fruta inicial geralmente comum a todos os vinhos.

- e boa persistência aromática, girando em torno de sete segundos: 1 a 3 segundo = baixa persistência; 4 a 7 segundos = média persistência; 8 ou mais segundos = longa persistência.

- trata-se de um vinho de assemblage: feito de corte, composto por várias cepas.

- de bom nível, de média complexidade, bem elaborado: indicadores de qualidade. A complexidade aponta para um vinho de aromas não óbvios, com 3 ou mais famílias aromáticas.

- podendo ser um vinho do sul do Rhône, um Chateneuf-de-Pape, com oito a dez anos de guarda: identifica-se aqui a apelação do vinho e o tempo de evolução.

- evoluirá ainda por uns dois ou três anos em garrafa até atingir seu apogeu: o vinho ainda atingirá seu apogeu evolutivo.

Miguel Cordeiro Nunes é Advogado graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, com especialização em direito Processual Civil PUC-COGEAE e LLM – Direito do Mercado Financeiro e de Capitais, pelo IBMEC. Atua no setor financeiro e bancário em instituição financeira. Contato: miguelcn@uol.com.br