Crônica de uma morte não anunciada por Flavia Bertuzzo - Coluna Psicologia e comportamento

“Meu pai morreu quando eu ainda era muito jovem. Muito jovem para entender o que seria viver uma vida toda sem ele”.

 Daqui a vinte anos provavelmente seja essa a frase que um dos cinco filhos do então candidato a presidência da república Eduardo Campos dirá em uma entrevista à tv, quando ele próprio for candidato a alguma coisa. Ficaram para contar a história e redigir sua própria história, cinco seres humanos no início de suas vidas.

 Que perda é essa que nos engole o direito de sermos escorados por quem nos gerou? Que desamparo é esse de viver tão precocemente o medo dos medos, o pesadelo dos pesadelos? Perder pai e mãe.

 A grande maioria de nós desde que se lembra de como é ser gente, cresce acompanhado desse pânico que só pode começar a diluir na idade madura (quando se dilui), porque nesta fase usualmente já teremos outros vínculos capazes de dividir em grau de importância a intensidade de amor e intimidade que construímos com nossos pais.

 Como se diz por aí, não deveria ser permitido a nenhum pai perder seus filhos, é  “contra a natureza”. Mas digo então que, da mesma forma, pelo mesmo critério justo, aos filhos não deveria ser (nunca) imputado o desamparo de perder a seus pais, antes que a própria natureza fosse capaz de providenciar vínculos tão provedores e indispensáveis à sobrevivência saudável.

 Falamos aqui claro, da sobrevivência afetiva, do crescimento sem sobressaltos, sem conhecer de perto a ausência da proteção. Eu diria que os filhos que perdem seus pais precocemente porém já em idade consciente e perceptiva da vida, jamais se recuperam, assim como os pais que perdem seus filhos em qualquer idade. Não recuperam a VIDA QUE PODERIAM TER, caso não houvesse tal separação, tal privação.

 Precisamos desta presença para crescermos em segurança, para acreditarmos que somos capazes de reger as próprias vidas, mesmo que isso não seja inteiramente verdade. Poderíamos aqui falar de outras partidas: perda de por abandono, perda de pais que nem puderam quase viver seus filhos ou não chegaram a vê-los nascer. Ocorre que todas elas teriam outros tipos de consequências, outras cicatrizes. A separação ao fim da infância e tenra juventude traz consigo um vento de consciência da vida que esfria a alma.

No dia da morte do candidato, de dentro do susto e angústia que em mim se instalaram, surgiu a frase que postei ao mesmo momento em que soube, no facebook: “Os planos servem para nos distrair da brevidade sem aviso da vida”. São eles que nos permitem ter a sensação de controle, de rédea, nos afasta da ideia de que somos mortais e mortais a qualquer momento.

 Quais são seus planos?  Procure por eles, alimente-os porque são boas ideias, valem a pena e porque basicamente você precisa deles. Vale a vida!

E vamos ter a vida que pudermos ter, levando nossas cicatrizes, construindo belezas, nobrezas ou caminhos em suas bases. Pode construir, elas são firmes.

 Meu pai morreu quando eu tinha 36 anos e desde então penso que é muito ainda viver o resto da vida sem ele. Mas cá estou, agora mais firme do que antes, cheia de ideias que não são do tempo dele. Minha casa não é mais a do tempo dele, tampouco meu consultório. Nem mesmo meu marido chegou a ser de seu tempo.

Qual então a conexão que vai além da lembrança? Digo com a convicção da vivência nossa de todos os dias: eu sou do jeitinho que ele me fez. Hoje percebo a presença massiva dele em mim, porque sua ausência me permite esse encontro, tão cristalino, tão intenso.

A ausência acaba por eternizar a presença.

Conforto.

Os cinco filhos chegarão lá.

Flávia de Tullio Bertuzzo Villalobos

 

Psicóloga formada pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e especialista em Psicologia Clínica Comportamental pela Universidade de São Paulo. Psicoterapeuta comportamental  de adultos e famílias, psicóloga do Ambulatório de Saúde Ocupacional da 3M do Brasil e proprietária da Villa Saúde – Psicologia & Cia, uma proposta multidisciplinar e inovadora de fazer saúde íntegra. Minha grande busca é transpor os limites do consultório, viver e aprender a psicologia em outras fronteiras, levar a ajuda e receber o aprendizado.  Contato:  villasaudepsicologia@gmail.com e Facebook: Villa Saúde - Psicologia & Cia