“Uma das maneiras de o vinho desempenhar um papel civilizador fundamental é ajudando recuperar o olfato ‘perdido’ e dando ao mundo uma dimensão olfatória da qual a maioria não tem consciência ou pior ainda, deliberadamente ignora,”… “O vinho nos ensina interpretar os odores e aprender com eles. Ensina que o bom e o mau cheiro têm repercussões, significados, consequências, às vezes quase uma força moral. O bom vinicultor cria belos odores. É possível sentir o cheiro dos atalhos e das oportunidades desperdiçadas no vinho sulfúreo do vinicultor preguiçoso. Vinhos ruins, na melhor das hipóteses, têm um cheiro enjoativo; bons vinhos cheiram bem.” Andrew Jefford (crítico e jornalista inglês).
Para retomar a sequência dos dois últimos posts, vale relembrar que na degustação de vinhos normalmente se faz:
{C}· a análise visual (para apurar o teor de álcool, limpidez, material corante - translucidez, e estágio evolutivo, para apurar se o vinho está pronto para ser tomado, prematuro ou passado);
{C}· a análise olfativa (para verificação de eventual defeito, da harmonia do vinho, para apreciação dos aromas, avaliação da complexidade aromática e também do estágio evolutivo); e, por fim,
{C}· a análise gustativa (para avaliação do corpo e do peso do vinho na boca, da qualidade dos taninos, do teor de álcool, do estágio evolutivo e da complexidade, do equilíbrio geral entre os componentes e da persistência aromática, que se faz após a deglutição).
No primeiro post da série (publicado em 17/03/14), tratei da análise visual e, no segundo, publicado em 06/04/14, da análise olfativa (parte 1), com abordagem dos aromas primários, aqueles que emanam naturalmente da taça sem necessidade de agitá-la. Ali falei das associações possíveis de certos aromas previamente conhecidos com vinhos feitos de determinadas uvas, o que, em degustação às cegas, ajuda na difícil identificação do vinho ou pelo menos da cepa ou assemblage de que foi feito.
Antes de seguirmos adiante, cabe responder uma pergunta não tão incomum feita por quem se inicia no conhecimento do vinho:
{C}· os aromas frutados que se sente nos vinhos são artificialmente adicionados a ele? Resposta: definitivamente não.
Ora, se tais aromas não são percebidos diretamente na fruta, como então explicar o recorrente aroma de líchia no vinho feito com uvas gewürstraminer? ou de morangos no vinho de pinot noir ? ou de cítricos como abacaxi no vinho de chardonay e maracujá no de sauvignon blanc? ou ainda o de alcatrão no vinho de nebbiolo?
Talvez seja útil então salientar que as uvas viníferas - uvas que não são de mesa e que se prestam à vinificação de vinhos finos - ordinariamente não são odorantes, mas possuem substâncias chamadas carotenoides, que são pigmentos amarelos encontrados em inúmeros outros vegetais.
Nas uvas, tais substâncias são pouco odorantes e pouco solúveis em água, mas, durante a extração do mosto - processo que extrai da fruta o sumo que será posteriormente fermentado -, as moléculas de caroteno (com 6 átomos de carbono) são quebradas em moléculas menores, voláteis e odorantes, gerando compostos de extremo interesse para o vinho, porque explicam o surgimento dos aromas primários, imperceptíveis na fruta íntegra.
Mas, em síntese, as substâncias responsáveis por tais aromas estão na uva vinífera, numa forma pesada e pouco volátil, daí não serem percebidas quando a cheiramos, pois abaixo do limiar de percepção, mas aflorando após a extração do mosto a ser fermentado.
Os demais aromas são decorrentes do processo fermentativo (aromas secundário) e da evolução do vinho em razão de guarda prolongada (aromas terciários/bouquet).
Aromas secundários
O vinho é o resultado da transformação do açúcar e de outras substâncias da uva, como ácidos graxos, em álcoois, ácidos e ésteres fermentativos. Os atores dessa transforação são as leveduras - que são fungos unicelulares, cogumelos com poderes de fermentação -, e bactérias.
Os aromas secundários são os decorrentes desse processo fermentativo, daí serem também chamados de aromas fermentativos. Dependem fundamentalmente das leveduras e das condições da fermentação.
Com o etanol/l, as leveduras geram mais de vinte ácoois, chamados de secundários, que apresentam alguns aromas oleosos e gordurosos; outros ainda de rosas (triptofol), cogumelos (octene-l-ol-3) etc.
É comum que os ácidos fermentativos e os ácoois formem ésteres voláteis e perfumados como o acetato de etila, que lembra o vinagre. Conforme a quantidade, poderá aportar complexidade ao vinho ou, ao contrário, poderá ser desagradável. Ésteres etílicos e acetatos podem acentuar aromas florais.
O ácido lático, resultante da ação de bactérias na fermentação do ácido málico pós fermentação alcoólica, amacia a bebida e aporta notas de manteiga e fermento em brancos e tintos e, às vezes, brioches e pão assado nos champanhes.
Enfim, inúmeras outras substâncias surgidas do processo fermentativo podem agregar qualidades ou mesmo defeitos aromáticos ao vinho. Tudo dependerá da matéria prima e do trabalho do enólogo na vinícola.
Aromas terciários
Fala-se em aromas terciários ou buquê quando se trata de vinhos talhados para algum envelhecimento. A longa guarda em barrica ou na garrafa, num caso ou noutro implicando ausência de contato do vinho com oxigênio, provoca reações químicas redutivas, ou seja o contrário de oxidativas - que vão levar a substâncias odorantes para compor a matriz de aromas evoluídos que não se encontram em vinhos jovens.
Os etil-fenois e os vinil-fenois induzem a aromas fenolados, os cheiros de animais, tais como couro e cavalo.
Os aromas decorrentes da ação da levedura brettanomyces são hoje considerados defeitos no vinho, pois em quantidades não muito elevadas podem induzir a aromas escatológicos, mas há quem defenda o uso dessas leveduras em pequena quantidade, por aportarem complexidade ao conjunto. O mais eminente vinho em que se encontra o uso do bretty, como é chamada a levedura, é o Ch. Haut-Brion, uns dos cinco 1er Grand Cru de Bordeaux.
O uso do anidrido sulfuroso também desempenha papel importante na formação de substâncias odorantes que podem aportar complexidade ao vinho, mas em quantidades excessivas podem gerar aromas bastante desagradáveis, de ovo podre, por exemplo, que pode desaparecer com uma boa aeração do vinho.
A fermentação em barrica de carvalho ou guarda prolongada na madeira também desempenha papel importante na composição dos aromas terciários.
Substâncias chamadas antocianos, originadas das cascas das uvas tintas e responsáveis pelos tons azul-arroxeados de tintos bem jovens, normalmente se ligam aos taninos oriundos da casca da uva, reagindo quimicamente e precipitando-se em borra.
Mas quando há aporte de taninos oriundos das barricas, os antocianos a estes se ligam quimicamente, deixando livres os taninos oriundo da uva para que esses desempenhem suas nobres funções relacionadas à longevidade do vinho. Há motivos para crer que, assim, a madeira desempenha seu principal papel no envelhecimento do vinho e na formação de uma futura paleta de aromas terciários.
O aroma de madeira não é algo que se persiga no vinho, embora haja nichos de mercado a busca disso. O bom vinho de guarda pode ter, quando muito, notas sutis de madeira, pois o que se busca não é exatamente esse aroma, mas a aglutinação química dos taninos da madeira com os antocianos.
Felizmente, é comum que notas de chocolate, café torrado, baunilha, coco despontem com maior ou menor sutileza por conta do uso da madeira e da tosta utilizada no fabrico das barricas, o que de certa forma incrementa a complexidade do vinho.
Mas fique atento: vinho barato com aroma intenso de madeira é sinal de uso de chips de madeira imersos no vinho guardado em tanques metálicos, para aporte de aromas e taninos da madeira. Essa não é a maneira correta de se obter os benefícios da madeira para um vinho nobre (postarei um artigo específico sobre o tema).
Por ora, ainda não se chegou a uma forma apreciável dessa prática. O resultado é rude, grosseiro, pois não ocorre a micro-oxigenação viabilizada pelos poros das barricas. Mas é, por certo, uma das mais baratas formas de se ter esses aromas num vinho barato, pois o preço de boas barricas de carvalho francês varia de 1,5 mil euros a 5 mil euros, girando as de carvalho americano em torno de 800 a 1,5 mil dólares.
Enfim, a evolução aromática que culmine nos desejáveis aromas terciários, ou buquê, além de dependerem de matéria-prima de ótima qualidade, decorrem também da oxirredução no recipiente de guarda, dos índices de anidrido sulfuroso, às vezes do estágio em madeira e da guarda prolongada em garrafa em boas condições de armazenagem.
Com relação ao último item (armazenagem), convém atendar para os cuidados que deve ter o importador. Ele deve zelar para que os vinhos viagem em condições adequadas, em containers refrigerados, para que não cozinhem ao sol no porto, enquanto a burocracia alfandegária retém os vinhos que depois serão vendidos aos consumidores a preços de ouro, apenas para se descobrir depois que estão totalmente descaracterizados e empobrecidos… Vejam vocês como toda uma tradição e empenho na vinha e na vinícola podem não chegar à sua mesa, em que pese você pagar muitas vezes mais pelo garrafa do que um consumidor no país de origem.
Os aromas comuns nos vinhos
Agora, estando claro que os aromas dos vinhos decorrem da fruta, do processo fermentativo e, no caso dos terciários, da longa guarda, perceba que é realmente desnecessária a descrição detalhada do vinho que se consome cotidianamente, na ausência de um motivo que justifique uma análise detalhada.
Se você não fizer parte de um grupo de degustação, em que haja a necessidade de troca de informações mais detalhadas, observe apenas o conjunto aromático, se é harmonioso, se é intenso. Se não houver harmonia ou se o conjunto for desagradável, essa informação chegará rápida e contundentemente ao cérebro, e então afaste a taça do nariz. Se, ao contrário, o cheiro for bom, demore-se em apreciá-lo antes de levar a taça à boca.
Vinhos tintos invariavelmente lembrarão frutos vermelhos ou negros, como amoras, ameixas, morangos, cerejas, framboesas, mirtilos, cassis. Vinhos brancos remeterão para frutos brancos ou amarelos, como maçã, pera, melão, abacaxi, maracujá. Poderá ainda ter aromas de flores. Se o tinto for envelhecido, ele poderá ter notas de especiarias, como pimenta do reino, cravo etc.
Caso você sinta algum toque de chocolate, café torrado, baunilha ou coco, poderá sugerir, se quiser, que o vinho passou algum tempo em madeira. Mas lembre que alguns desses aromas poderão decorrer da fermentação malolática (que transforma o ácido málido em ácido lático), sem que o vinho tenha passado por madeira.
Abandonando a timidez e falando de aromas do vinho
Tintos
Numa situação de consumo informal, soa arrogante a descrição minuciosa do vinho. Mas se você estiver num meio em que se atribua alguma importância a isso, por exemplo numa degustação entre amigos que gostam do assunto, você não errará se mencionar que o tinto, lembra frutos vermelhos, ou negros, se ele puxar para esse lado. Poderá dizer, conforme o caso, que lembra cassis (já vai causar impressão). Se você sentir um toque de madeira, chocolate ou café torrado e mencionar que o vinho tem “notas empireumáticas” aí vai arrasar (família aromática = empireumáticos).
Brancos
Se disser que o branco tem aromas de frutos brancos ou amarelos, se disser que remete a frutos de climas temperados ou de clima tropical, se disser ainda que tem notas florais, a chance do vinho ter esses aromas é altíssima, em se tratando de vinhos brancos jovens. Mas se você buscar captar os aromas, a informação estará lá e será apanhada pelo seu nariz. E então você falará com certeza, mas note, essa certeza é dispensável, pois o subjetivismos e a diferença entre as pessoas pressupõe que alguns sentirão algo e outro não.
Se forem brancos da Borgonha e você sentir algo que lembre lácteo, manteiga, fermento, pode disparar, porque provavelmente esses aromas estão lá, costumam ser fragrantes nos brancos da Cote D’Or (Borgonha) que, em geral, fazem fermentação malolática, aportando esses aromas ao vinho.
Vinho evoluído com a guarda
Se perceber que o vinho tinto é menos frutado, remetendo para aromas mais complexos, difíceis de explicar à primeira vista – digo, à primeira aspirada-, principalmente se for um vinho envelhecido, com cinco ou mais anos, você poderá estar diante de um vinho mais maduro e poderá arriscar dizer que o vinho tem especiarias (família aromática = herbáceos), e se sentir aromas como couro, carne, suor e análogos, poderá dizer quem tem notas animais (família aromática = animais).
Acredite! esses aromas podem estar em vinhos especiais amadurecidos, que não são baratos, não sendo, por isso, uma experiência do dia-a-dia. Mas quando você se deparar com uma garrafa assim, vai lembrar dessa nossa conversa, desses aromas terciários aqui tratados, e não se intimide a ponto de deixar de emitir suas opiniões, se fizer sentido que sejam emitidas na ocasião.
Mas sempre haverá ocasião entre amigos interessados no mesmo tema. Agora observe que vinhos que não foram feitos para envelhecer jamais chegarão a esse patamar, jamais terão buquet, aromas terciários. Poderão ser ótimos vinhos para consumo rápido, cumprirão seu desígnio, mas não espere deles o que jamais poderão te entregar: finesse, sofisticação, complexidade, profundidade, persistência aromática.
Embora a degustação de vinhos seja marcada fortemente pelo subjetivismo, degustar não é adivinhação; é seguir trilhas de informações visuais, olfativas e gustativas que apontam para certas uvas, certos blends, certos modos de fazer o vinho, certas regiões produtoras, mais próximas ou mais distantes do equador.
Portanto, essas dicas não são um atalho para que as pessoas fantasiem sobre o que sentem ao degustar um vinho. São apenas referências para uma abordagem despretensiosa, descomplicada, e com probabilidade alta de acerto sobre algo em torno do qual se criou um inconveniente aparato de sofisticação que complica por demais as coisas.
E isso é exatamente contrário do que se espera do vinho, como facilitador da convivência. O desfrute das companhias e dos prazeres da mesa não pode conviver com embaraços oriundos da pretensão de enófilos pedantes e desagregadores, que felizmente são cada vez mais raros, dada a globalização que facilitou o acesso a vinhos do velho mundo e outras regiões produtoras, ampliando o mercado apreciador da bebida.
De todo o modo, para um aprofundamento maior, é necessária uma certa litragem, alguma leitura ajudaria e bastante disciplina na observação de aromas. Isso te habilitará para descrições mais precisas. Mas divirta-se bastante, abusando de sua ferramenta olfativa, exercendo seu poder de observação e de descrição. Degustar é antes de tudo uma forma lúdica de apreciar a existência. Vale muito a pena explorar as possibilidades!
No próximo post, análise gustativa e defeitos do vinho perceptíveis na degustação em sua três fases.
Bons brindes!