Sozinho na multidão - Coluna Psicologia por Leticia Kancelkis

 

Cada um de nós nasce com um potencial para compreender o mundo, para trazê-lo para dentro do coração e cada um, de acordo com esse potencial e com as experiências vividas, ocupa um lugar, psiquicamente falando. Esse “lugar” pode não ser encontrado e ocupado tão facilmente. Tudo depende de como a pessoa pôde construir a própria identidade e de como ela a sente em relação ao outro que o rodeia.

Muitos de nós nos sentimos simplesmente sem lugar, sem a chance de exercer o direito de ocupá-lo. Isso pode decorrer de ideias fantasiosas de que não se pode ser o que é, entendendo, possivelmente, que é necessário adaptar-se e atender tão somente às expectativas do outro, como se fosse possível ser como um líquido que assume a forma do recipiente que o contém.

Esses movimentos psíquicos, além de infrutíferos por serem repetições de conflitos inconscientes, são extremamente cansativos, extenuantes. Afinal, isso parece uma busca infindável por si mesmo, pela resposta à pergunta: “Quem posso ser sem que, com isso, eu perca aqueles a quem amo?”

Sim, parece-me que é a fantasia inconsciente de que é necessário ser o que o outro quer que o sujeito seja, que move esse tipo de funcionamento e que o faz sentir-se aterrorizado pela ideia de estar/ficar sozinho como consequência de seu fracasso em ser verdadeira fonte inesgotável de atendimento das expectativas imaginadas que o outro teria em relação a ele. Afinal, isso é impossível; está no campo do imaginário.

Tudo isso acontece de uma forma muito escondida na mente e traz bastante sofrimento pelo sentimento de solidão que pode se instalar junto com a ideia de que a própria pessoa provocou isso. É fácil existir, então, um sentimento de culpa associado a ele.

Sente-se sozinho no meio da multidão? O que estaria por trás disto? Convido você a sondar seu coração, buscando identificar sentimentos e ideias que podem estar ligados a estes, dos quais falamos aqui. Somente quando identificamos e compreendemos questões como estas, é que podemos fazer com que percam a força de nos prejudicarem. 

Leticia Kancelkis

Coluna Psicologia

Formada em Psicologia desde 1999, Mestre e Doutora em Psicologia Clínica de referencial Psicanalítico pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC Campinas). Autora dos livros: “O Sol Brilhará Amanhã: Anuário de uma mãe de UTI sustentada por Deus” e “Uma menina chamada Alegria”. Atua como Psicóloga Clínica, atendendo também por Skype. Contato:leticia.ka@hotmail.com

 

Uma conversa entre sertanejos e a Psicanálise a respeito “de amar” - Coluna Psicologia/Psiquiatria por Leticia Kancelkis

Vamos provocar um breve diálogo entre Paula Fernandes, Fernando e Sorocaba e Luan Santana e a Psicanálise sobre aspectos relativos a formas de “amar”/relacionar-se? Para isso, colocaremos trechos de suas músicas como base para alguns comentários.

 

“Eu tô carente desses olhos negros
Desse teu sorriso branco feito neve
Eu tô carente desse olhar que mata...

Paula Fernandes nos fala de paixão, daquele estágio do relacionamento em que o ser “amado” é simplesmente perfeito. Só enxergamos a beleza dele, as suas boas qualidades e expulsamos de nós mesmos a possibilidade de entrarmos em contato com qualquer espécie de ponto negativo que esse outro possa ter. É como se negássemos a realidade de que todos  temos coisas boas e ruins dentro de nós; ou melhor, qualquer um pode ter defeitos horrorosos, mas o amado não.  Nesse estágio, dados de realidade a respeito do escolhido do coração fazem pouco ou nenhum sentido para si. Ele é o príncipe encantado do conto de fadas, que lhe fará feliz para sempre!


Eu corro a 120 com o carro na contramão
Eu me lanço ao vento do décimo quinto andar
Aprendo a voar pra te provar
Que a fé move montanhas e eu movo o mundo
Pra te amar”

 

Já Fernando e Sorocaba referem-se a uma euforia incrível também relacionada à paixão e esta uma paixão predominantemente adolescente: adolescente porque o cidadão corre na contramão, se joga do décimo quinto andar, aprende a voar (só que não!), enfim, faz o impossível acontecer e nem morre... Estamos falando de uma fantasia absolutamente típica e um tanto quanto perigosa da adolescência: a fantasia de onipotência, que basicamente se trata de acreditar que se pode tudo sem que nenhum mal possa lhe atingir. Esta música também parece falar sobre o “poder do pênis”, o poder masculino que move montanhas e o mundo para conseguir tudo o que deseja.  

“Um grande amor não é questão de sorte
E pode ser que você nunca note
Que eu faço tudo por você, mesmo sem você merecer"

Olha Fernando e Sorocaba de novo ajudando-nos a avaliar outras formas de se relacionar. Neste trecho, eles nos mostram como complementamos neuroticamente o outro, em uma repetição de conflitos inconscientes com a figura materna/feminina ou paterna/masculina. Aparentemente, a pessoa está amando alguém que lhe provoca a sensação de que jamais conseguirá conquistar completamente esta mulher, a qual pode estar representando a mãe, por sua vez sentida como tão exigente, que não poderá ser atendida em suas expectativas (fato gerador de muita angústia, que busca a via de escoamento).  Em suma, pode haver o sentimento de ser sempre insuficiente para obter reconhecimento e aceitação.  

“E eu vou estar
Te esperando
Nem que já esteja velhinha gagá
Com noventa, viúva, sozinha
Não vou me importar
Vou ligar, te chamar pra sair
Namorar no sofá
Nem que seja além dessa vida
Eu vou estar
Te esperando”

Luan Santana parece aludir ao amor cuja vivência é inviável por algum motivo. Ele diz que ficará esperando, nem que seja além dessa vida, ou seja, fala de uma condição psíquica mais comum do que se pode pensar ser, em que o amor acontece por alguém que permanece eternamente apenas na fantasia. Alguém, portanto, irreal, que pode ser moldado, controlado, construído do jeito que não o ameace pelo simples fato de ser alguém que existe dentro de si e que, principalmente, não tem como ser perdido. Afinal, ninguém perde o que não tem.  

 Amamos do jeito possível para nós, com todas as “contaminações” de nossos conflitos inconscientes, com todas as nossas possibilidades e limites. “Amamos” (ou nos relacionamos) da forma como dá para fazer isso: a partir de nossas vivências e de nosso peculiar potencial para colocar essas vivências para dentro de nossos corações; e podemos dizer que, conforme diz o compositor, “toda maneira de amor vale a pena; toda maneira de amor vale amar...”

Leticia Kancelkis

Coluna Psicologia/Psiquiatria

Letícia Kancelkis – Formada em Psicologia desde 1999, Mestre e Doutora em Psicologia Clínica de referencial Psicanalítico pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC Campinas). Autora dos livros: “O Sol Brilhará Amanhã: Anuário de uma mãe de UTI sustentada por Deus” e “Uma menina chamada Alegria”. Atua como Psicóloga Clínica, atendendo também por Skype. Contato:leticia.ka@hotmail.com